Um pouco

Um pouco de humanidade para que saibamos quem são os anjos.

Um pouco de brincadeira para que possamos rir de nós mesmos no final.

Um pouco de bagunça nos quartos, um pouco de descontrole nos prazos, um certo descompasso das horas limites, a gravata um pouco afrouxada, um pouco de nada de sério, e sinais sem significado, para que possamos conhecer a harmonia dos nossos caminhos sem ruídos, sem poluição de conteúdos, sem a rigidez e a moralidade que não são da vida.

Um pouco de pontes e fronteiras, só pelo prazer de cruzá-las, um pouco de barreiras sob os pés, só para ver a alma se transpondo e rindo-se do outro lado.

Um pouco de cinza se desfiando entre prédios e sonhos, edificando-se em visões e vontades, para que possamos a nossa própria aquarela criar, espalhar, manchar de luz, diluir em novos cenários.

Um pouco de choro, água tecida dos sentimentos, um pouco de choro nos nossos olhos, só porque dele nasce o riso por todo o corpo.

Um pouco de inimigos, um pouco de nomes sujos e blasfêmias contra nossa verdade, só para nos vermos agarrados à ternura e ao sorriso amigo, fazendo nascer da injúria, a inocência de quem cai e continua levantando, só para vermos a ascendência de nossos corpos alados, contemplando as muralhas de cima.

Um pouco de desamor, de abandono, para que conheçamos a doçura dos braços que nos acolhem.

Um pouco de coração cheio de buracos, um pouco de desesperança, de destempero nos toques da vida, para que nossas mãos saibam, pelo resto de nossos dias, que podem renascer e se movimentar com a esfera da vida, novamente, eternamente, no ritmo de uma natureza maior.

Um pouco de desencanto, de movimentos menores para que as conquistas existam no mérito da esperança, no coração da perseverança.

Um pouco de não, aliás, muitos “nãos”, para que a pronúncia do sim seja única e inesquecível.

Um pouco de dúvida, incerteza, indefinição e passos parados, um pouco de horizontes empacados, para que conheçamos a clareza do enfim caminho a ser trilhado, para que os passos sejam nossos, conscientes, certos de que já passaram pelos testes, alertas de que já pisaram em terreno escorregadio e seguiram.

Um pouco de desestrutura, de desligamentos, um pouco de destinos que parecem nunca se encontrar, para que possamos repousar no fim de uma busca, e retomarmos o fôlego para uma nova.

Um pouco de peso no coração, de pesar nas palavras, um pouco de dias carregados, para que conheçamos a surpreendente paz que virá a permear nosso tom, desenhar a energia do nosso toque, para que surjamos da nossa amargura, para que saltemos para uma nova mistura de reinvenções, de vidas mais leves, de dias mais ternos e agradáveis.

Um pouco de sombra e escuridão, só para vermos a noite que nós mesmos criamos, só para conseguirmos criar alguma vela, soltar alguma direção luminosa dos nossos olhos, descrever no ar e no ambiente a mágica de nossos espíritos.

Nossos sonhos estão a caminho e nossas realizações se configuram no mistério das fontes que só cantam suas águas no cair da noite. Naveguemos, pois tudo em volta é água, e a matéria dos quereres é tênue e bela como seus reflexos. Que o brilho que se faz do céu nos mares ao nosso redor seja espelho dos nossos propósitos. Naveguemos, pois os mares não se aquietam, e não param, e nenhum barco nos acolhe, naveguemos, pois só temos nossos pés e nossas mãos para revelar a intenção dos nossos corações, e só temos nossos corações para apaziguar nossas mentes, naveguemos, pois as praias não virão até nós ...

... um pouco de desencontro, para que nos encontremos no final ...