eu, os meninos, o fogo e a roda

Estava no meu quarto, estava me sentindo afundado em mim mesmo,

uma sensação dura de abandono, como se tivesse congelado,

na verdade mesmo, eu estava. Levanto fazendo apenas o uso

da vontade, num esforço para abrir a janela. Não era noite,

nem dia, aquele momento em esses estados, um não terminou

e o outro não se formou. havia algo de medo do meu ser interior,

como se todas as feriadas estivessem abertas naquele dia, uma

sensação que me deixava à beira da insanidade, que sustentava

com as lembrança onde contive essa erupção ou a controlei com

meu esforço de pô-la pra fora, hábito que desenvolvi desde que

tive um ato terrível de auto negação, como se todo sentimento fosse uma ameaça. Uma mistura de cansaço existencial e uma ânsia desesperada pra sair dele, o que me deixava exaurido e sem esperança.

Ao abrir a janela, do outro lado do rua, num terreno que fazia tempo que a casa havia sido demolida, vejo uma fogueira acesa e ao seu redor, muitas crianças e adolescente de mãos dadas, rodando, dançando, celebrando algo que eu não sabia, elas riam e pareciam soltas no mundo, como se tivesse inserida no mundo e não margeando, com receio, como há muito tempo eu estivera.

No impulso que não sei explicar, saltei a janela, não sei, sinceramente

como conseguir força pra fazer aquilo, junto com esse ato, o medo da rejeiçãoou a própria rejeição já estruturada no meu corpo, hesitante, de passos lentos me aproximei, a fogo era forte, de cor vermelha e fagulhas com mexas azuis, alaranjada, amareladas ou roxa, um fogo como esses nos lembra a verdade do fogo, poderosa e não conceitual

como costumamos desenhar. Era vivo, inquieto, transbordante, as vezes caia sua potência, mas logo volta à dança como se tivesse jogado algum gás ou gasolina no seu centro. Ao chegar perto, algumas crianças me olharam e continuaram a rir, dançar, não sabia o motivo, mas por certo, era apenas ponto suas energias em movimento, num momento de extrema beleza, um menino magro, esguio, de cabelo escorridos, soltou a mão do colega e a estendeu pra mim.

trêmulo, envergonhado, quando adulto tudo isso

é muito dificil para se entregar, mesmo assim, uma força estranha possuiu minhas

pernas trêmulas, e dei a mão ao garoto, o outro menino, um pouco mais velho, esticado como os adolescentes, que ultrapassa a sua própria idade, segurou em minha mão, o outro, na mão esquerda, a gente rodava, eu os acompanhava, mas ainda como que uma paródia, uma imitação desordenada, como se ali, a roda que compreendia o fogo com todo seu simbolismo não fosse meu lugar,

Assim, prosseguir por alguns momentos, quando como uma passe de mágica, meu corpo ganhasse outras energias de movimento, que me fazia ser, ao menos nos primeiros momentos tão

entregue quanto eles, hesitei, tive dúvidas, meio que mais devagar que os outros, me senti atrapalhando, quando alguém gritou, você é bem vindo, lembra de como você era. que ajuda o movimento, uma imagem de mim mesmo, em que teria uns sete anos, me veio a mente, então

de novo eu estava com o grupo, já não sentia meus passos, já não sentia meu corpo, era como se o movimento fosse feito por algo que não fosse eu, mas eu sabia que era eu, ou ´parte de mim ainda vivia no subsolo das minhas vivencias. Foi quando o fogo deu um salto,

muitas cores, variantes de movimento, aumentou de volume, pensei querendo me dizer alguma coisa, numa intuição ou num milagre, mentalizei minha raiva sendo jogada no fogo e sendo

queimada, minha inveja, minha tristeza, as dores das perdas, as frustrações de tantos caminhos mal compreendidos ou percorridos, e uma leveza se aproximou de mim, uma sensação

de prazer e poder, uma alegria juvenil, daquelas costumávamos ter quando jovem e nem sabíamos que aquilo era nosso tesouro de tão fartura que era. E todos olharam pra mim, riram e seus olhos refletindo o fogo fazia o gesto ainda mais iluminado, aproveitei e joguei também a frustação e a raiva da minha mãe por ter sido ausente e por não ter dado pra mim uma bicicleta que era minha obsessão quando criança, as agressões do meu pai, de todas as agruras da escola, o fato de eu ter ido a primeira vez na escola sem um caderno, de não ter sido amado como eu sonhava, mas que sabia que eles fizeram o que sabia, e fui

jogando, as dores do meu casamento que acabou, a dor da minha filha não ter crescido do meu lado, as gozações dos colegas, o fato de eu não me sentir integrado ao mundo, as vergonhas que a cultura

nos impõe quando saímos da linha, a culpa que carregava por alguns erros, as mágoas acumulas por tantos desencontros, o

desencanto, a falta de esperança, a insegurança, meus hábitos que não me faz crescer, e na minha imaginação via-os todos queimados, e quanto mais queimavam, meu corpo se soltava ao ponto de uma sensação de liberdade e prazer me deixar tão solto quanto os meninos. E de repente, experimentava sentimentos deliciosos de uma paz, uma energia erótica percorrendo do fogo pra mim, eu me sentia um com o fogo, um com os meninos, e dentro do mundo pela primeira vez em muitos anos. Quando a dança acabou, todos me olhavam, e cada um deles foram ficando rarefeito, cada um deles como uma missão cumprida me olhava e me sorria com a alegria que eu devolvia ainda um tanto sem jeito, foram, um a um, desaparecendo, mas não senti medo, algo em mim sabia que aquilo era uma providência, uma manifestação do sagrado.

Até que ficou eu e o fogo, o fogo e eu, passei as mãos por todo meu corpo, beijei de longe suas labaredas, foi quando uma emoção estagnada que eu lutava há anos, que eu nem sabia dá nome se movimentou no fundo da minha alma, procurando brechas, espaços,

como se ela mesma soubesse que era hora de partir.

Quando voltei pra minha casa, aquele milagre que não poderia contar pra ninguém, porque me zombariam, estava guardado dentro de mim, vivo, como se um mito estivesse atualizado através desse rito. Como se um córrego se tornasse um imenso lago, um braço de mar, ou mesmo a mar na sua profundeza,

Voltei pra casa ainda extasiado, fiz uma xicara de chá, não pus açúcar, uma camomila ainda tão bela que parecia ainda está em sua nascente, quente, e ele descia pela minha língua e garganta como se alguma coisa, como um grande trator sideral, estivesse aberto uma nova estrada, sem barricada, livre, por onde corria amor e compaixão

Ariano Monteiro
Enviado por Ariano Monteiro em 31/01/2021
Reeditado em 31/01/2021
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