G’Dausbbah
G’Dausbbah
Alexandre Santos (*)
O desejo de sangue
Depois de um breve descanso,
já refeita da peleja em que feriu e matou,
a besta acordou,
pronta para uma nova jornada de ódio, cobiça e ranço.
Olhos injetados,
Hálito sepulcral,
Couro rachado,
Voz infernal.
Queria espalhar dores e sofrimentos.
[queria] empestar o mundo com tristezas e tormentos.
[queria] sufocar a paz, estimular atritos.
[queria] semear a intriga, colher gritos.
Queria ouvir o lamento dos exilados.
[queria ouvir] o arfar dos mutilados.
[queria ouvir] o pranto dos vencidos.
[queria ouvir] o suspiro dos foragidos.
Queria esmagar a felicidade.
[queria] festejar a maldade.
[queria] regar a terra com o sangue fresco das crianças.
[queria] salpicar o vento com o cheiro acre das matanças.
Ao léu escolheu um alvo no qual pudesse despejar sua sanha.
Um lugar no qual pudesse agir impune, sem manha.
Um povo no qual pudesse seu ódio cravar.
Um momento no qual pudesse ferir, massacrar, matar.
Os preparativos da invasão
Convocou os senhores das guerras.
Bestas sempre ávidas por mais ouro e terras.
Determinou os horrores.
Cobrou suplícios e dores.
A guerra
Um sinal, um rufar, a máquina estúpida foi movida
Promessa de dor, desespero, alma ferida
A girândola macabra funcionou
A terra tremeu, o mundo mudou.
O ribombar dos canhões
O silvo diabólico dos aviões
A lava em brasa dos vulcões
A cadência mortal das legiões
O mal chegou.
Querendo riqueza, matou,
querendo poder, esfolou,
querendo prazer, torturou.
Por onde passou,
Um lamento ecoou.
Um rastro de angústia e ruína,
Violência, brutalidade e rapina.
A devastação
Onde deveria haver amor, cuspiu rancor.
Onde deveria haver alegria, plantou agonia.
Onde deveria haver luz, pintou escuridão.
Onde deveria haver flores, espalhou temores.
O que deveria exalar perfume, cheirava estrume.
O que deveria viver em festa, pranteava o luto.
O que deveria exibir fartura, rachava em pedras.
O que deveria estar em paz, se debatia em ódio.
Negando clemência aos deserdados,
Apontando lanças e dardos
A besta insuflou o ataque final
Até impor um silêncio mortal, a vida sem sal.
A ocupação
Em meio às trevas a besta exultou o mal.
Imaginou um mundo infernal,
De miséria universal,
Deserto sem igual.
Reino da mentira, desencanto, solidão.
Sombras, labaredas, tempestades, escuridão.
Cheiros e choros da dor sem fim.
Serpentes e dragões em maligno festim.
A reação
Mas o sol não se apagou
a paz das armas não vingou.
Um tênue facho brilhava na alma reprimida
Um fio de vida animava a carne ferida
Na procissão dos exilados, o desejo da volta.
Na vitrine dos mutilados, a rebeldia contida,
Na mesa dos vencidos, a lembrança da comida.
No medo dos foragidos, o germe da revolta.
Em cada gesto um aviso
Em cada olhar um sinal
Em cada toque, um convite
Em cada lamento, um desafio
E o povo de Deus se levantou
Lutou
Reagiu
Ressurgiu
Em cada casa, uma trincheira,
Em cada rua uma bandeira,
Em cada praça, uma batalha,
Em cada cidade uma fornalha.
A expulsão
O tempo passou.
A resistência cresceu.
quando pode, mordeu.
quando precisou, correu.
Avançou,
recuou.
Fustigou,
pressionou
Sob relâmpagos e trovões,
Anjos e santos, piratas e ladrões.
O fim de um tempo de enxofre, eclipse, clarões.
O fim de um tempo de pesadelos e visões.
Diante do sonho de liberdade, o homem se fez forte.
Diante do medo da liberdade, a besta temeu a morte.
Os anjos louvaram a vitória.
Os demônios escafederam-se na história.
O sol surgiu.
Um sorriso se abriu.
A música soou.
A festa começou.
Paz e Glória
Os mares borbulharam beijos.
Os campos brilharam estrelas.
O fogo ardeu paixões.
O céu espelhou encantos.
Onde havia rancor, brilhou o amor.
Onde havia escuridão, brotou luz.
Onde havia horrores, desabrochou flores.
Onde havia agonia, sorriu a alegria.
O que cheirava estrume, exalou perfume.
O que pranteava luto, viveu festa.
O que rachava em pedras, exibiu fartura.
O que se debatia em ódio, proclamou a paz.
E, enfim livre, o povo pode viver.
Em festa, desfrutou o fruto permitido.
Em paz, degustou o mel proibido.
Em gozo, saboreou a verdade escondida.
Milhões de asas, tontas de luz,
singraram o céu azul.
[Elas] comemoram o raiar do sol,
a chegada da paz,
vida sem rancor,
um mundo só de amor.
* Alexandre Santos é ex presidente da União Brasileira de Escritores e coordenador nacional da Câmara Brasileira de Desenvolvimento Cultural