Os Lírios já não crescem em nossos campos

“Não tive tempo para ter medo”

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Não há como pavimentar nossos caminhos sem as luzes que se refletem dos anjos!!!!Mesmo esparsas são irremediavelmente a continuidade e não a finitude!!!!

O PAÍS DE UMA NOTA SÓ

Não pretendo nada,

nem flores, louvores, triunfos.

nada de nada.

Somente um protesto,

uma brecha no muro,

e fazer ecoar,

com voz surda que seja,

e sem outro valor,

o que se esconde no peito,

no fundo da alma

de milhões de sufocados.

Algo por onde possa filtrar o pensamento,

a idéia que puseram no cárcere.

A passagem subiu,

o leite acabou,

a criança morreu,

a carne sumiu,

o IPM prendeu,

o DOPS torturou,

o deputado cedeu,

a linha dura vetou,

a censura proibiu,

o governo entregou,

o desemprego cresceu,

a carestia aumentou,

o Nordeste encolheu,

o país resvalou.

Tudo dó,

tudo dó,

tudo dó…

E em todo o país

repercute o tom

de uma nota só…

de uma nota só…

RONDÓ DA LIBERDADE

É preciso não ter medo,

é preciso ter a coragem de dizer.

Há os que têm vocação para escravo,

mas há os escravos que se revoltam contra a escravidão.

Não ficar de joelhos,

que não é racional renunciar a ser livre.

Mesmo os escravos por vocação

devem ser obrigados a ser livres,

quando as algemas forem quebradas.

É preciso não ter medo,

é preciso ter a coragem de dizer.

O homem deve ser livre…

O amor é que não se detém ante nenhum obstáculo,

e pode mesmo existir quando não se é livre.

E no entanto ele é em si mesmo

a expressão mais elevada do que houver de mais livre

em todas as gamas do humano sentimento.

É preciso não ter medo,

é preciso ter a coragem de dizer.

PÃO DE ACÚCAR

Manhã clara de sol toda ouro e azul

e no fundo do céu,

a corcova apontando,

a silhueta do Pão de Açúcar.

Bem no alto o bondinho

– Lá embaixo a floresta,

o verde tropical,

e mais embaixo, profundo,

o mar rolando em espumas na praia.

Pão de Açúcar

– uma doce mentira!

Nunca foste pão,

és somente granito, rocha viva,

ornamento selvagem da natureza dos trópicos.

Bom seria que foras mesmo um pão enormíssimo,

um pão de verdade,

que daria talvez para alimentar muito tempo

os famintos que rolam pela aí na cidade.

E que te olham, Pão de Açúcar,

e não podem te ver,

que a miséria os cegou,

secando-lhes para sempre os olhos da poesia.

CAPOEIRA

Capoeira quem te mandou,

capoeira, foi teu padrinho.

O berimbau retinindo

na corda retesa,

cadência marcada

da ginga do jogo.

Zum, zum, zum,

capoeira mata um.

A perna direita

lançada pra frente,

o peso do corpo equilibrado na esquerda,

os braços jogando

de um lado pro outro…

Capoeira quem te ensinou?

De repente uma queda,

o capoeira na terra,

o aú,

de cabeça pra baixo,

as pernas no ar,

a rasteira varrendo

como foice no chão,

o corta-capim, o rabo-de-arraia,

e o inimigo caindo

de supetão,

ao puxavante

da baianada.

Luta africana

que o mestiço encampou,

que os guerreiros da mata,

quilombos, palmares,

souberam jogar.

Que o angolano nos trouxe,

que o mestre Pastinha nos soube ensinar.

Coreografia. Jongo do povo.

Zum, zum, zum

capoeira mata um.

CANÇÃO DOS LÍRIOS

Eu canto à vida,

eu canto a liberdade,

como os lírios crescem em nossos campos,

livres, selvagens.

Se já não crescem como antes,

existe algo sombrio,

é preciso abrir uma clareira no bosque.

Não me limitarei ao campo da arte…

e não escolherei momento, tempo e modo,

de exaltar-te,

lírio, flor, canção, fruto,

amor – a liberdade.

Não calarei jamais

e sempre te direi a mais bela, a mais pura.

Se já não crescem como antes os lírios

em nossos campos,

existe algo sombrio,

é preciso abrir uma clareira no bosque.

LIBERDADE

Não ficarei tão só no campo da arte,

e, ânimo firme, sobranceiro e forte,

tudo farei por ti para exaltar-te,

serenamente, alheio à própria sorte.

Para que eu possa um dia contemplar-te

dominadora, em férvido transporte,

direi que és bela e pura em toda parte,

por maior risco em que essa audácia importe.

Queira-te eu tanto, e de tal modo em suma,

que não exista força humana alguma

que esta paixão embriagadora dome.

E que eu por ti, se torturado for,

possa feliz, indiferente à dor,

morrer sorrindo a murmurar teu nome”

(Presídio Especial, 1939)

MÚSICA DE MANO BROWN EM HOMENAGEM À MARIGHELLA

https://www.youtube.com/watch?v=Sh66AcD3o6k

Dados do Acervo - Coleção Eneida

Número de Chamada

869.914 M335l CEM

Autor Principal Marighella, Carlos

Título Principal Os Lírios já não crescem em nossos campos / Carlos Marighella

Publicação [S.l. : s.n.], 1966.

Descrição Física 61 p. ; 18 cm

Assuntos Poesia brasileira Séc. XX ´

Carlos Marighella
Enviado por Serpente Angel em 27/10/2018
Reeditado em 27/10/2018
Código do texto: T6487343
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