TRAVESSIA

O poema abaixo, escrito em alexandrinos, foi publicado na

Antologia Del’Secchi, Volume XXV, 2015.

TRAVESSIA

A bordo vinham meus sonhos; antigamente

Usavam uniformes, brava gente,

A enfrentar garbosamente oceanos.

Eram sonhos reais; na fugidia

Luz da manhã o seu olhar luzia,

Contemplado, a sorrir, por veteranos

Que doutras tantas viagens navegavam

E sabiam como os mares destratavam

Os sonhos jovens nas ondas refulgentes:

Que muito em breve, essas tranquilas ondas

Seriam mais profundas do que as sondas

E os sonhos não seriam suficientes.

Não é que houvesse tantas tempestades:

Foi mais a calmaria, as saciedades,

A despertar em minhalma a sensação

De que tudo era inútil desatino,

Que a multidão dos sonhos de menino

Não era mais que vaga exaltação.

Seguiram no navio, trocando as velas,

Aqueles pobres sonhos, já sequelas

Do que antes tinham sido; inquietação

Constante no intestino, enjoo manso,

Sabendo que esforçar-se sem descanso

Não impediria sua lenta humilhação.

Foram sendo superados, um a um,

Amorteceram; afogou-se algum,

Porém a maioria adormeceu.

Do olhar se foi a luz... Ficou desdita,

A luta se manteve, nessa aflita

Contemplação de um ser que não morreu,

Mas não vive tampouco, nessa mágoa

Inconsequente de trilhar a tábua

Sempre oscilante do velho tombadilho:

Percepção constante e visceral,

Que não importa o ardor mais triunfal

No oceano da vida: escuro e brilho

Independem de nós, são aleatórios,

Os ventos nos arrastam, peremptórios

E o bem e o mal nos chegam sem esforço.

Sobreviveram os sonhos, resistentes,

Porém sabendo que muito mais potentes,

São o acaso e a aleivosia, seu reforço.

Assim os sonhos passaram a cumprir ordens

Dos desgostos, das pragas, das desordens,

Tornaram-se confiáveis e obedientes,

Esperando, talvez, terminaria

Em um porto essa viagem, dia a dia,

Contrário o vento e de tufões frequentes.

E a bordo vêm meus sonhos, no presente,

Esfarrapados, magoados, no impotente

Esforço de cumprir tanta rotina,

Roídos de escorbuto, doídos, fracos,

Escravos da esperança, pobres cacos,

Com lustro ainda ao fundo da retina.

William Lagos

Tradutor e Poeta

Blog: www.wltradutorepoeta.blogspot.com