O Sol e a Lua: Ein Kunstmärchen
(A Stephanie Martins)
“[…] Thou wert my purer mind,
Thou wert the inspiration of my song;
Thine are these early wilding flowers,
Though garlanded by me.
Then press unto thy breast this pledge of love:
And know, though time may change and years may roll,
Each flowret gathered in my heart
It consecrates to thine.”
(P. B. SHELLEY)
***
“In my palace deep
Lyca lies asleep.”
(BLAKE)
I
Compassiva e terna segure minha mão,
Gentil Melpômene, e permita-me afastar
Os pesares que obnubilam-me o coração;
Que cada lágrima que venha a derramar
Inspire a melodia de minha canção,
E antes de uma vez mais seguir a penar
Dia a dia na prisão que a mim mesmo fiz,
Possa entreter a ilusão de ser feliz.
II
Conjurai-me mil visões fantasiosas
Que de tudo e todos façam-me esquecer;
Novas paisagens, impolutas e formosas,
Que nunca antes pôde o Homem conhecer;
Que da juventude as cenas mais saudosas
Possa eu, velho prematuro, reviver
E, qual um mago, metamorfoseie o Pranto
Em encantos para os versos de meu canto.
III
Se me evade a esperança de um porvir,
Que possa ao menos só por hoje inventá-la;
Se não há vivalma disposta a me sorrir
Também posso (por que não?) a mim criá-la –
E se uma alma irmã vier a existir
Tal como eu no mundo, espero agraciá-la
Com o otimismo, a alegria e o calor
De meu poema, fruto de pesar – e amor.
IV
Sem mais delongas, minha heroína cantai-me,
Que sabe o que é sofrer tanto quanto eu.
Em meus inexperientes versos auxiliai-me,
E possa eu contar tudo que lhe sucedeu.
Do início ao fim por minha empreitada guiai-me,
Tu a quem consagraste como o vate teu,
Ó gentil musa! Lesta trazei-me à memória
A figura de Lyca, e sua história.
V
Era uma noite de inverno friorenta;
Desdenhoso dos vivos, Bóreas soprava.
Era uma noite escura, estranha, agourenta,
Que apenas o mal – nada mais – pressagiava.
Só a cantilena monótona e lenta
De um mocho, longe, muito longe, se escutava,
E no céu a diáfana Lua crescente
Torcia-se num sorriso malevolente.
VI
Um vasto, imensurável, infinito prado
Que ao horizonte e além se estendia,
De qualquer reduto humano afastado
E ao qual pessoa alguma chegar saberia
(E só encontrando-o após ter caminhado
A sós, a esmo, dia e noite, noite e dia) –
Foi o lugar onde, cansada de sofrer,
Lyca escolheu para deitar-se e morrer.
VII
Subjugada pelos grilhões do Sofrimento
(Ah, pena tão cruel! Tão desproporcional!),
Refém da Solidão e de um atroz tormento
Interno que cria jamais ter um final,
Quem lhe pusesse os olhos naquele momento
Admirando-a tão jovem, fresca, virginal
Lutando presa entre a Morte e a Vida,
A julgaria uma ninfa adormecida.
VIII
Duas rosinhas pequeninas, desbotadas,
Coloriam-lhe as bochechas tenuemente;
As mãos de boneca, pequenas, delicadas,
Longe do corpo pendiam molemente.
As volumosas madeixas despenteadas
Agitavam-se com o vento inclemente,
E o singelo vestido branco que usava
Ineficiente agasalho lhe propiciava.
IX
Subia e descia em regular compasso
Seu alvo seio à medida que respirava,
Cada vez mais fracamente – o corpo lasso
Longe de qualquer socorro se estirava
E, sentindo que a Morte com seu lento passo
Mas insaciável gula se aproximava,
A desafortunada garota tremia:
À mercê do frio e do pavor padecia.
X
Oh! Quem me dera ser capaz de lhe dizer,
Querida Lyca, que alguém há de salvar-lhe!
(Ou até mesmo ser eu próprio a romper
As barreiras da Fantasia e resgatar-lhe!)
Se pudesses em teu sono antever
O nobre herói que virá para libertar-lhe –
Ora! Precipitei-me de tão empolgado!
Retornemos donde havia eu parado.
XI
Por sorte, coincidência ou destino,
Sobrevoava por aquela região
Um silfo diáfano, aéreo, pequenino
Por seu mestre enviado numa missão.
Baixinho entoava algum místico hino
Que contra o frio lhe concedia proteção,
Já que até mesmo a um ente sobrenatural
Aquela ventania faria algum mal.
XII
No meio do caminho algo atiçou
Sua atenção e, seus passos retrocedendo,
Nossa trágica heroína avistou,
Submissa ao gélido ar, semimorta jazendo.
O lépido silfo então se empertigou
E, suas asas freneticamente batendo,
Avançou à garota como um beija-flor,
Num misto de pena, apreensão e pavor.
XIII
“Ainda vive, mas é meu poder inútil –
Eu sozinho não posso reavivá-la”,
Lamentou-se ante sua esperança fútil
De despertar a garota e salvá-la.
“Pode ser que meu senhor seja mais útil!
Certo estou de que poderá ajudá-la!”,
Exclamou esperançoso e, velozmente,
A seu destino dardejou celeremente.
XIV
Atravessou, em questão de meros segundos,
Campos, florestas, cidades incontáveis;
Vales e desfiladeiros tão profundos,
A olhos humanos nus imperscrutáveis;
Paisagens, semblantes, monumentos, mundos
Distintos, variegados, infindáveis,
Até que no horizonte pôde avistar
A linda ilha à qual chamava de seu lar.
XV
Uma entre outras mais, desabitadas,
Em fauna, flora e magia abundantes –
Do Homem e sua cobiça afastadas
E, sob inverno ou verão, sempre verdejantes
E frescas, pela alcunha de “Abençoadas”
Era como, desde as eras mais distantes,
Aquele arquipélago bem escondido
E mítico era pelo mundo conhecido.
XVI
Só um homem foi o único e primeiro
A estabelecer no arquipélago morada:
Um novo Próspero, um nobre feiticeiro
Que, ao cabo de árdua e duradoura jornada,
Abraçou o propósito tão altaneiro
De passar toda a sua vida, por Deus dada,
Estudando os arcanos de Sua Criação
Em sinal de sua profunda devoção.
XVII
Leoline, ó leitor, é como se chamava,
E ao sopé de uma montanha residia;
A todos os seres da ilha comandava
E em seu estranho gabinete, noite e dia,
Ainda mais estranhas artes estudava –
Mas, às vezes, em seu âmago sentia
Que faltava-lhe algo urgente, crucial,
Que coroasse-lhe a Obra, afinal.
XVIII
Em meio a arcaicos volumes submergido
Foi como o silfo, de costume, o encontrou
Ao adentrar a choupana, esbaforido.
“Ora, Aiolos!”, Leoline o cumprimentou.
“Trouxe-me aquilo que havia lhe pedido?”
Ao vê-lo tão fora de si, interrogou:
“Raras vezes vejo-o assim tão perturbado!
O que houve, que deixou-o tão incomodado?”
XIX
“Oh, meu senhor! Esqueci-me completamente
De minha missão, mas deixe-me explicar!”,
Replicou Aiolos ao mago, cortesmente.
“Vim, na metade do percurso, a encontrar
Uma garota de aparência inocente
Exposta ao frio e a ponto de expirar!
Nada pude fazer para ajudá-la…
Mas não quero à própria sorte abandoná-la!”
XX
O feiticeiro, bondoso por natureza,
Ante tal percalço se sensibilizou.
“Saberia apontar, Aiolos, com certeza,
O lugar onde tal garota encontrou?”
“Decerto!”, respondeu o silfo com presteza,
E Leoline, com um assobio, chamou
Um hipogrifo – de todos o mais veloz.
“Mostre-me!”, ordenou com imperiosa voz.
XXI
E com o fiel Aiolos servindo de guia,
Em seu confiável hipogrifo montado
Ele singrou o negro céu da noite fria
Até chegar àquele campo desolado
Onde, imperturbada, Lyca ainda jazia
Tal como o silfo a havia encontrado.
“Lá está ela!”, apontou Aiolos enfim,
E deste modo sua busca chegou ao fim.
XXII
Neste meio-tempo, uma sombria serpente
No seio de Lyca se enrodilhara,
E para cravar-lhe as presas cruelmente
Com ávida volúpia se preparara.
Sem hesitar, Leoline rapidamente
Sacou do robe sua inseparável vara
E fez, com um feitiço, a cobra levitar
Para longe da menina em pleno ar.
XXIII
“Posso ver que não é um simples animal”,
Disse o bruxo, atentamente a estudando.
“Discirno em sua testa o sigilo do Mal
E em seus olhos um obsceno brilho nefando,
Como se lhe comprouvesse o final
De toda a Vida.” A serpente, coleando
No ar, odiosamente lhe respondeu:
“De fato! Sou o Anjo da Morte – Azrael!
XXIV
E quem és tu, mortal, que vieste roubar-me
Minha presa, que por mim tanto clamou
E, passando sua juventude a procurar-me,
Hoje, finalmente, a mim encontrou?
Crês poder impedir-me de saciar-me
Desta garota, que a mim se entregou
Após ver-se pelo mundo desamparada
E preferir correr ao encontro do Nada?”
XXV
“Dou a ela meu amparo e proteção!”,
Leoline exclamou, em triunfo, à serpente.
“Em minhas mãos hei de tomar seu coração
E o nutrirei de volta à vida novamente –
Procure, pois, outra vítima! Hoje não
Devorará esta menina inocente!”
E, tendo seu colóquio chegado ao final,
Esmagou-lhe a cabeça num gesto brutal.
XXVI
De seu ilusório cadáver destruído
O agourento espírito abominável
Tornou ao lugar donde havia partido:
De Satã o negro reino inominável.
Longe, porém, de lamentar ter perdido
Uma presa, a Morte, sempre infatigável,
Sabia – com o raiar de um novo dia,
Várias outras pelo mundo encontraria.
XXVII
Com Lyca agora afastada do perigo,
O mago tomou-a nos braços, cuidadoso.
“Nada mais tem a temer! Está comigo”,
Sussurrou-lhe em seu ouvido, carinhoso.
Carregando-a feito um bebê consigo
E manobrando o hipogrifo, cauteloso,
Não demorou até que à ilha voltasse
E em sua própria cama a garota deitasse.
XXVIII
Ao nobre Aiolos Leoline recompensou
Com uma noite de descanso merecida,
E ele próprio em claro, insone, a passou
Pensando em como restituir Lyca à vida.
No fim, um potente elixir preparou –
“Mas por tanto frio e pesar enfraquecida”,
O feiticeiro calculou, “infelizmente
Só em três dias despertará novamente.”
XXIX
Para interrogar a garota ansioso,
Não podendo tanto tempo esperar
(Pois sempre fora demasiado curioso
E não cessava Lyca de o intrigar),
Pensou: “Sei que é um tanto quanto indecoroso,
Mas sua mente haverei de adentrar;
Se quero ajudá-la em sua necessidade,
Cedo devo apurar toda a verdade.”
XXX
Efetuando um movimento elaborado
Com sua varinha mágica na mão,
Pousou-a na testa de Lyca, delicado.
Logo viu-se envolvido num turbilhão –
E à mente da garota fora transportado.
Espantado com a completa escuridão
Dos pensamentos de uma tão jovem menina,
Andou – a vara servindo de lamparina.
XXXI
Tempo depois vira no céu desenhar-se
A rotunda Lua cheia, enorme, prateada,
Iluminando a triste Lyca a sentar-se
Num altíssimo penhasco, à beirada.
Sob os pés de ambos podia escutar-se
O mar bravio – e a garota, deslumbrada,
Ignorante de sua precária condição,
Apenas à Lua dirigia atenção.
XXXII
No entanto teve sua concentração rompida
Ao perceber Leoline, que tanto cintilava.
Em sua direção correu, enternecida –
Abraçando-o, copiosas lágrimas chorava.
“Se aproxima, enfim, o fim de minha vida?”,
Extasiada, a garota soluçava.
“Em teus braços, ó Morte, irá me receber
E no Além (se é que existe) não mais vou sofrer?”
XXXIII
O mago carinhosamente respondeu:
“Sou poderoso, mas igualmente mortal,
E (o que mais importa) ainda não morreu.
Antes que encontrasse da vida o final
Encontrei-a primeiro – e o que se sucedeu
É que, tendo eu resgatado-a do mal,
Em minha casa repousa tranquilamente:
Da doença está agora convalescente.
XXXIV
Daqui a três dias haverá de acordar,
Mas perdoe-me por tomar a liberdade
De em teus sonhos surgir para a questionar;
Sem esquecer-me, porém, da civilidade,
Apropriado julgo me apresentar.
Lhe ofereço meu amparo e amizade!
Meu nome é Leoline, e sou hoje em dia
Um raro praticante da vera magia.
XXXV
Confesso sentir-me um tanto intrigado
Vendo-a assim tão jovem, minha querida,
Amaldiçoando à tua estrela e a teu fado.
Por que sente tanta aversão pela vida?
Pode em si encerrar tão grande pecado,
Que por Deus não possa ser absolvida?”
Ainda triste, mas acalmada enfim,
Replicou Lyca ao gentil feiticeiro assim:
XXXVI
“O meu grande pecado talvez tenha sido
Nutrir em meu seio a grande ambição
De fazer do mundo um lugar mais colorido
E desnudar-lhe os sonhos de meu coração.
Parece-me que é deveras entendido;
Seja esta, portanto, minha explicação.
Meia palavra basta a bom entendedor,
E não quero recordar-me de minha dor.
XXXVII
Mas peço-lhe: não poderia ajudar-me?
Se é mago, bruxo, ou o que seja, verdadeiro,
À Lua, à longe Lua, não pode mandar-me?”
“Por que à Lua?”, perguntou o feiticeiro.
“Com o que sonhei quero reencontrar-me
E meu coração em pedaços ver inteiro –
Tudo aquilo que na Terra se perdeu
Vai parar na Lua – num livro assim li eu.”
XXXVIII
“Como se chama?”—“Lyca.”—“Sente-se ao meu lado,
Ó cara Lyca, e ouça o que tenho a dizer.”
Ela, que a ele havia se afeiçoado,
Julgou que faria bem o obedecer.
Tendo suas lágrimas finalmente secado,
Ele retomou: “De algo precisa saber –
Não necessita ir tão longe, minha criança,
Se quiser reencontrar sua esperança.
XXXIX
Aos insultos do mundo jamais dê ouvidos!
Que deve você ao mesquinho julgamento
De homens revoltantes, vis, embrutecidos,
Que se alegram infligindo sofrimento
Àqueles que são de seu meio excluídos
Por não seguirem vaidades do momento?
Se aquilo que pensou serviu a você,
Deve se ofender por maus críticos por quê?
XL
Pelo ódio e pela morte não deixe levar-se;
Ainda é jovem, tem tanto para viver!
De quaisquer feridas pode ainda curar-se,
E nem só com o Pesar pode aprender.
Pela esperança, pela fé deve guiar-se,
E quando menos esperar poderá ver:
Seu sofrimento atual, minha criança,
Um dia se tornará uma mera lembrança.
XLI
Todos aqueles que um dia a insultaram
Mais cedo ou mais tarde hão de sucumbir;
Sua morada, que com ódio edificaram,
Sobre as tênues fundações hão de ruir.
Todos os males e injúrias que causaram
Na mesma medida pode retribuir:
É só seguir vivendo, e verá então
Que os esforços de seus rivais foram em vão.
XLII
Viva – nem que seja por curiosidade;
Viva – pois não deve parar de sonhar;
Aquele que busca a beleza, a verdade
E o bem haverá, decerto, de os encontrar.
Jamais deixe-se render à perversidade,
Pois nem ela para sempre irá durar –
Tal como a negra noite, que parece infinda
Mas é o presságio de uma manhã linda.”
XLIII
Como se as palavras do mago escutasse,
A Lua foi-se – e com ela a noite levou,
Enfim permitindo que o Sol iluminasse
A cena que, em sua mente, Lyca criou
E fazendo com que a garota avistasse
Todos os sonhos que um dia já sonhou
Na forma de borboletas, tão delicadas
Que alguém creria fenecerem se tocadas.
XLIV
Todas elas a menina circundaram,
Demonstrando-lhe carinho e gratidão,
E com seu toque tão gentil a recordaram
Do bem que existia em seu coração.
Tanto Leoline quanto Lyca gargalharam
Ante tamanha, encantadora visão,
Mas a garota, de energia renovada,
Em plena luz parecia transfigurada.
XLV
Seu riso harmonioso ecoava
Qual as notas de afinada melodia;
O delicado rosto se iluminava
Numa infantil, irrefreável alegria,
E vendo-a tão bonita Leoline pensava
Que com uma fada, ou um anjo, parecia –
Assim a alegria a havia transformado,
Pois com a beleza ela anda lado a lado.
XLVI
Todos os castelos que no ar erguera
Vira reconstruídos naquela dança –
Numa das borboletas reconhecera
Seus ingênuos devaneios de criança;
Outra em seu ser encerrada trouxera
Algo que cria ter perdido – a Esperança;
E nos olhinhos de todas podia ler:
“Deu-nos a vida! Não pode nos esquecer!”
XLVII
Após o enxame de sonhos se desfazer
Lyca, com afeto, a Leoline encarou
E a única coisa que pôde lhe dizer
Foi: “Obrigada, bom homem que me salvou.”
Lágrimas de emoção puseram-se a escorrer
Dos olhos, e o feiticeiro a abraçou.
“De nada, querida – mas devo agora ir,
Pois também sinto sono e quero dormir.”
XLVIII
“Voltará mais vezes para me visitar?”,
Perguntou Lyca, alegre e ansiosamente.
“Adoraria, mas preciso trabalhar
Observando-a até que acorde finalmente –
Certifique-se, então, de descansar
E em três dias nos veremos novamente.
Até lá, tenha um sono bom, abençoado,
E saiba que sempre estarei ao seu lado.”
XLIX
Em um novo abraço Leoline a envolveu,
Um abraço caloroso e paternal –
E, mexendo a varinha, desapareceu,
Fazendo seu feitiço chegar ao final.
Numa cadeira finalmente adormeceu
Percebendo o que lhe faltava afinal:
De um de seus semelhantes a companhia,
Alguém para dividir sua sabedoria!
L
E como acuradamente calculara,
Após três dias lhe servindo de doutor
A feliz Lyca finalmente despertara –
Estudando os arredores em estupor,
Com tantas bizarrices se apavorara
Mas, vendo a seu lado o seu salvador,
Percebeu que não fora um sonho tão somente
E cobriu-o de beijos, carinhosamente.
LI
“É muito bom vê-la fora de perigo”,
Disse ele enquanto seus cabelos afagava.
“Graças a seus cuidados, meu caro amigo”,
Emocionada a menina lacrimejava.
“Ah, quem dera cá pudesse ficar contigo!
Em minha própria terra ninguém me amava –
Por meu pai e minha mãe fui deserdada,
E por amigos – falsos! – vi-me enganada.”
LII
“Em verdade… que ficasse gostaria”,
Disse-lhe ele, com seus olhos cintilantes.
“Não sei o que é ter humana companhia
Desde meus já idos anos verdejantes –
A dos silfos às vezes me entedia,
E constatei algo que tantas vezes antes
De meu cérebro já tentei expulsar:
Estou velho, e um dia hei de expirar.
LIII
(Como haverá de constatar eventualmente,
Os silfos são um povo gentil, exemplar –
Também são muito eloquentes, igualmente,
Mas não pode-se com eles gracejar
Já que a tudo levam tão seriamente…!
Só pensam, o dia todo, em trabalhar.
Assunto com eles é sempre limitado,
Difícil não sentir-se às vezes chateado…)
LIV
A manhã de minha noite haverá de ser;
Como o Sol um dia vai me substituir;
A escuridão sempre precisa perecer
Para que possa uma nova manhã luzir.
Quer mesmo aqui, como minha filha, viver?”
E Lyca, qual uma criança a sorrir
Prestes a ganhar um fantástico presente,
Respondeu: “Sim!” alegre e enfaticamente.
LV
Desde então seis anos haviam passado –
Lyca com Leoline se estabelecera
E, por seus amigos nas obras auxiliado,
A residência do feiticeiro crescera.
Todo o seu conhecimento, vedado
A outros míseros mortais, ela aprendera
E, dividindo o mesmo amor e a mesma ilha,
Sempre chamavam-se de “pai” e de “filha”.
LVI
Vários outros companheiros coloridos
Atendiam-na se o mago se encontrava
No trabalho absorto: os silfos, tão polidos
Mas tão sérios; o Leão, que se curvava
Ante sua pureza; a Ovelha, que com balidos
Vinha saudá-la quando se aproximava;
O Unicórnio, de porte régio e garboso;
E o Hipogrifo, de ar fero e majestoso.
LVII
Nunca foi capaz, porém, de se esquecer
Por completo de seu passado sofrimento,
E às vezes longe gostava de se esconder
Para lançar uma ou outra lágrima ao vento,
Esperando que os tristes as pudessem ver
E se tornassem, mesmo que por um momento
Efêmero, uma esperançosa visão
A quem necessitasse de consolação.
(São Carlos, 29 de junho de 2022)