Abusaste-me a mim e a vida!
Carrego uma raiva nos olhos.
De todos os dias em que me encheste de bofetadas,
de todas as noites que batias-me
e mandavas à minha dor calar-se
e nunca pude gritar, nunca!
Porque os teus xipocués* ameaçavam-me morte.
Dia após dia, convivia com os fantasmas do teu abuso
e nada, nada mesmo podia falar.
Quem acreditaria que tu, logo tu
que me pariste, viesses a abusar-me?
que papá é esse? Não, não é o meu pai!
É um satanhoco* que se apossou dele
É um lobo, é um xipocué! Não é meu pai
Não! Não é meu pai.
Dia após dia, tenho que carregar esses fantasmas,
que nunca deixam-me ver a claridade do dia.
Tudo tornou-se cinzento...
E nada mais peço a vida, senão a morte.
Se alguém me sustenta o corpo,
então esse alguém é um cadáver ambulante
que finge estar vivo.
Escondo-me por detrás das palavras
Para não sairem gritos de desespero.
Escondo-me por detrás dum sorriso
Para disfarçar a melancolia da minha alma.
Escondo-me em cada gesto, em cada abraço
em cada aperto de mão, em cada frieza
que evidencia minha dor e sufoco-me
Para que nunca, ninguém saiba
que me roubaste a dignidade.
Tem sido uma luta, dia após dia.
Minha alma amarrada de repulsa
Meus olhos escancarados
Minha mente que se quer desabrochar em palavras,
de pedido de socorro, desespero, angústia
meu maior medo é nunca ser ouvido.
Mas a revolta que trago em mim, quer despertar-me
Para o dia de amanhã,
Quando a longa madrugada estiver a cessar-se
Como os galos gritam o despertar do sol que prossegue
Gritarei o anúncio da minha revolta
Uma certeza radiante se aproximando,
Clareando todos os caminhos obscuros do abuso que sofri
e dignamente, erguer minha cabeça
e voltar a ser o que um dia,
deixei de ser.
Glossário:
Xipocué - demónios.
Satanhoco - Satanás de cobra.