ALMA-DE-GATO & MAIS
VIVEIRO XXII -- A ALMA-DE-GATO
A quem compararei o meu amor?
À alma-de-gato, cuja voz plangente
melindra o homem do campo, em seu freqüente
miado lamentoso e enganador...
É como se cortasse a solidão,
no reencarnar pujante de um felino...
Talvez um leão-baio... ou um desatino
a horrorizar de emboscada o coração.
E assim eu vejo nela: hoje ronrona,
mas amanhã é a onça, que me espreita
e nunca sei como a mim reagirá...
Nem sei como resisto, se ressona
um rancor sideral, que me desperta
e nem sei que outros desgostos me trará...
VIVEIRO XXIII -- A AVESTRUZ
A quem compararei o meu amor...?
Quem sabe, ao avestruz de longas penas,
de grandes olhos, ávidos de gemas,
duas gemas eles mesmos, no rigor
com que examina o mundo, cobiçoso...
Mais que comida, procura sua moela
conservar bem repleta, porque ela
lhe permita triturar o mais nodoso
alimento, que engula quase inteiro...
Mas meu amor engole humana gente,
que tritura no fundo de sua mente
e transforma em novos personagens,
para que, num alento derradeiro,
possam povoar de seus contos as miragens...
VIVEIRO XXIV -- O PINGÜIM
A quem compararei o meu amor?
Será ao pingüim, com seu fraque ridículo?
Como um bruxo, a presidir um conventículo
de feiticeiras nuas... seu calor
a exudar... permeando o trajo inadequado,
buscando conservar-se inacessível,
ao mesmo tempo que busca a impossível
consolação de um beijo imaculado...
Por sua posição, de incrédulo profeta
da deusa viva e morta e ressurreta.
Ele que apenas quer-se ver amado,
mas se entoleima na gala, apalhaçado,
de quem pretende conhecer segredos
por trás da máscara... que só lhe esconde os medos.
NUNCUPATÓRIO
Aretino proclamava, sem enganos,
que quanto humano fosse, pertencia
ao próprio coração; e lhe trazia
a aceitação longânima do abismo...
Amores são humanos, desumanos,
amores inumanos, pederastas,
amores pedofílicos, nas vastas
e tolas seduções do masoquismo...
Amores sádicos, revoltos em zoófilas
predileções; e mesmo nas necrófilas
ansiedades humanas... São loucuras
e, todavia, embora não me agradem,
em outras circunstãncias e amarguras,
talvez o amor atual até apagassem...
diz-se nuncupatório um testamento ditado em presença de testemunhas, no qual se dispõe de uma herança, mas sem redação de um advogado, nem registro em cartório.
VIVEIRO XXV -- O PAVÃO
A quem compararei o meu amor?
Pensemos no pavão, que a cauda espeque.
Centenas de olhos cegos neste leque,
escudos num velame de esplendor.
Pois dizem que sequer olhar os pés
consegue... São disformes essas patas,
adequadas a planícies, não a matas,
como pobres alicerces têm as fés.
que tanta vez empolgam os humanos...
Uma cabeça altiva, em suas roupagens,
um substrato oco em suas miragens,
mas sem quaisquer poderes sobrehumanos.
E assim é meu amor, rico e vazio:
leque abrangente em seu destino frio...
VIVEIRO XXVI -- O TUIUIU
A quem compararei o meu amor?
Ao tuiuiu, de plumagem tão estranha,
de hábitos mutáveis, de tamanha
versatilidade em seu vigor...
Desaparece ao longo de estações.
Depois retorna, tal qual uma cegonha,
esse pernalta, por mais que se exponha
às investidas de tantas gerações
de répteis famintos... Cruel mundo
é esse tão louvado -- o natural...
E meu amor é assim que sobrevive,
por pura persistência, de rotundo,
aos embates do plano individual,
em todos os ambientes em que estive...
VIVEIRO XXVII -- O DODO
A quem compararei o meu amor?
Ao pássaro imortal, o extinto dodo.
Um amor empalhado, com denodo
a resistir às traças, com valor...
Um amor antigamente devorado;
amor outrora tido delicioso,
amor de pássaro, sem nada de ardiloso,
que hoje só pode em museus ser encontrado.
Pois tinha amor tão manso, tão gentil,
o pobre dodo, que nunca se esquivava...
E era logo morto e alimentava
os navegantes... Sem nada de sutil,
realizou-se a extinção de tal amor,
então buscado... tão só por seu sabor.
VIVEIRO XXVIII -- A CEGONHA
A quem compararei o meu amor?
Será à cegonha, de vôo compassivo,
trazendo ao bico, no mais puro candor,
os filhos de uma raça?... Ao redivivo
rebrotar fraudulento de uma lenda,
em que não se acredita... E se pretende,
nessa invenção solícita, ver prenda
de um Criador que às preces sempre atenda,
quando um casal deseje conservar
para novas gerações o seu genótipo...
É assim o meu amor, finjo que é meu,
mas só pertence à lenda, que a adejar,
renova em mim as fraldas... Num arquétipo
de tantos versos que Dionysos me deu...
VIVEIRO XXIX -- A GRAÚNA [THE GRACKLE]
A quem compararei o meu amor?
Às asas negras daquela graúna
louvada de Alencar, e que reúna
em si as graças de um vago e sedutor
sorriso que, afinal, nunca apelara
para meus gostos fixos na Europa,
nessa cultura fixa, que engazopa
seus descendentes, em modelos que marcara
como sendo ideais completos de beleza,
na nórdica perfeita e escandinava,
mas que, enfim, não me acordou paixão...
E agora vejo, sem grande surpresa,
que meu ventre cada vez mais excitava
a típica morena da canção...
BEZOAR
Eu fui imaginando se me atingem
os traços da velhice e da doença
e nada encontro. Ainda que a presença
eu busque em vão nos membros que me cingem.
E como se eu quisesse punição
pelo que fiz ou não pude fazer...
É como se quisera pertencer
dos condenados à feroz legião.
Parece então que, à guisa de castigo,
mandaram-me escrever versos sem conta
e registrar, sem mágoa, toda a afronta
que desejei ao mundo, desde o antigo
rancor que habita dentro ao coração,
ao novo orgulho em nova tentação.
um bezoar se forma no ventre das ovelhas e outros animais lanosos, às vezes em forma de pedras de cálcio, às vezes como duros novelos de lã.
BIRDCAGE XXX -- O TANGARÁ
A quem compararei o meu amor?
Ao tangará, que dizem sete cores
possui em sua plumagem de esplendores
a reluzir dos bosques no verdor.
Porque essas sete cores, também tenho,
Meus versos não são simples. Ao contrário,
podem ser lidos em estranho e multifário
e múltiplo sentido, em cada empenho.
Onde se vê ciência, existe sexo.
E onde se vê sexo, é alegoria
para guerra ou religião. E se avizinha
por trás dos versos, um obscuro nexo.
Em vez de amor, lá está a filosofia,
que me consola das ausências da rainha...
VIVEIRO XXXI -- O UIRAPURU
A quem compararei o meu amor?
Ao uirapuru, que dizem seresteiro,
em seu canto profundo e condoreiro,
proclamando nos bosques seu valor...
Como todos, o seu canto é interesseiro.
Não se encontra dos humanos ao dispor.
Não se destina a transmitir calor,
mas apenas demarca o seu terreiro...
Territorial é esse canto. A área de caça,
a posse de suas fêmeas, seu domínio:
nenhuma transcendência nos perpassa...
Porém, quando se vive em solidão,
seu canto surge, com fatal fascínio,
e esmaga, gentilmente, o coração...