cemitério

estranhamente

mesmo com toda sua obviedade

somente hoje pude perceber

o imenso número de lápides e túmulos

que jaz em meu jardim

talvez seja por ter acostumado à sua escuridão e morte

à seu cheiro desagradável de coisas escondidas

à suas barras de ferro enferrujadas e fajutas

aos seus muros decadentes

às suas lâmpadas queimadas e postes derrubados

a seu silêncio que como um lençol onipresente

transforma mais ainda aquilo que via como jardim

no que de fato hoje pude vislumbrar

estou em um cemitério

caminhando com sombras e ecos

abraçando perdas e beijando delírios

de uma mente perturbada que há muito tempo

deixou de compreender o que sempre foi

de fato dizer e se negou

a aceitar que se um dia aqui houve vida

há muito jaz enterrada junto à sonhos e amores

mas aqui não é como a caixa de pandora

esperança é o nome que enfeita uma das

primeiras

lápides

ainda que antiga, possui um resquício de capricho

e carinho em sua fonte

talvez pela incerteza de sua morte

talvez pela tristeza de seu desaparecimento

junto à ela está o amor e a verdade

estes com fontes menos enfeitadas

como se depois da esperança

tudo tenha se desandado

mas não se preocupe

continuo cavando

logo o pouco que sobrou será silenciado

pelo escuro da terra e do caixão

e não muito depois

todo este lugar desaparecerá

deixando como único presente ao mundo

sua total ausência de resquício

o total esquecimento de sua banalidade

pois aqui

seja o nome que queira atribuir

nunca deveria ter existido

e não posso esperar para me deitar

junto à última lápide que ficará vazia

pois o único que a poderia marcar

jaz de olhos fechados

finalmente esquecendo e esquecido

do resto deste mundo

que infectou com a sujeira de sua alma