Poética - A digestão de Cronos: Cronofobia
O tempo devora tudo aquilo que outrora deu à luz; introjetando sua prole de volta ao ventre.
Assim, fanam-se os filhos da vida sob teu corpo marcado pelas sombras retilíneas.
Esguio, o tempo consome a minha condição humana e tudo que dela um dia se fez.
Ó tempo, como vencer-te se trucidas minha juventude com teus dentes de ancião?
Tu que vertes o sumo saudoso de um passado enganoso; e reflete em teus olhos o terror de um futuro prematuro.
Teu pêndulo oscila entre a escolha e a renúncia; e quando tu geras uma vida, devoras tantas outras; desfigurando nelas, a mulher que nunca hei de ser.
Em tua passagem desperdicei-me inúmeras vezes e deixei que engolisse os meus sonhos antes mesmo de vê-los nascer, pois temia enxerga-los realizados fora de mim.
Enquanto me consumias, eu sempre fitava-me através do espelho a procura de uma criança perdida e já alçava a face decrépita de uma velha desconhecida.
Tu ó entidade nefanda, engole-me lentamente e saboreia os vícios; ruminando a depressão e arrotando o postergar da vida.
Já sinto-te a abater o meu rosto com tua mão esmagadora; dilacerando a minha carne e imobilizando-me sobre os teus dedos.
Com o passar das horas eu já não enxergo-me mais no agora. O tempo passa e escorro em teu esôfago, direcionando-me para os tecidos do amanhã.
(...)
A ansiedade é o intestino do tempo e ela digere-me eternamente nos canais ácidos de um futuro intransponível.
Já a procrastinação é a traça que devora as páginas da alma no livro do tempo em seu eterno adiamento.
E Cronos é a pulsão que aprisiona as nossas realizações no tártaro do medo.
Com a passagem do tempo, a melancolia veio alojar-se em meu peito, e como estrelas cardíacas,
os meus sonhos ainda pulsam no ventre frágil da existência.
No declínio das horas, desponto-me
com os meus membro avulsos ao mundo.
- Quem sou e para onde fui, se direciono-me para o mais fundo abismo do fim ?
Resta que eu me transforme dentro do tempo e me refaça, expelindo-me para fora de mim.
Ó tempo, sou a matéria indigesta do teu banquete enfadonho, cuspa-me às margens da consciência para que eu me conscientize acerca do horizonte finito da vida.
Tua fome insaciável o faz jantar-me ao fim do dia; então alimente a noite com tudo o que suavemente se apaga dentro de mim, para que então, eu possa renascer dos resíduos de uma história jamais escrita.
- Letícia Sales
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