Perdido
Eu já não sou mais o mesmo
Ainda caminho pelas mesmas ruas escuras
Com seus recantos sombrios molhados de suor e chuva
Nas noites que refletem a melancolia inconstante das lâmpadas
Mas já não sou mais aquele louco que te olhava em silêncio
Dedicado a decifrar as entranhas do amor perfeito
Não sou mais o mesmo que observava as estrelas na noite gelada
Mas ainda acompanho distraído a paisagem cotidiana
Que se recorta e desbota no chacoalhar do ônibus veloz
Entre montanhas, águas e raios de sol embaçados de garoa
Já não há encanto nas cores da serrania
Em meio a solidão coletiva que assola a estação de trem
Eu observo meu rosto num reflexo sorrateiro
Não sou mais mesmo, pareço cansado, esgotado de mim mesmo
Falta um "eu" dentro da carcaça
Teria "eu" sido perdido em tantos devaneios?
Ou teria sido roubado pela inconstância urbana que me corrói pela moral?
Escravizado pelas horas ferrenhas que me destroem pelas manhãs?
Ou teria finalmente fugido para me embrenhar nas matas do mundo?
Onde estou afinal?
Ninguém responde no espelho
Enxergo apenas olhos vermelhos, cabelos esbranquiçados pelo tempo, um falso sorriso no canto da boca.
Não há sentido no reflexo de um jovem tão velho
Num lapso de fúria parto tempestuoso pelos outros espelhos mudos, pelas escadarias íngremes e os arvoredos ensolarados da cidade
Eu grito, e nem o eco sabe onde estou
Perdido entre os farrapos da vida que descasca, afundado em garrafas que se misturam no chão sujo, chafurdado em papeis em branco e cigarros que eu não lembro de ter fumado
Uma profusão de memórias ao vento noturno
E então posso imaginar onde estou
Perdido nas páginas de um livro que não terminei
Perdido nas trilhas de terra, onde me deitei embriagado
Perdido na incerteza de existir, onde me deixei levar pelo delírio
Perdido no silêncio dos teus olhos, ainda a espera da resposta
Ainda a espera de um sinal no horizonte incerto das montanhas
Eu consigo ver onde estou,
através da névoa, do sangue e da terra molhada
Mas não há mais volta
Estou perdido nos seus olhos, embebidos em indiferença
Perdido nas cartas que poderia ter escrito
Nos sorrisos que poderia ter dado
Sigo sem rumo, em vagos floreios na via láctea da solitude
Mas já não há mais volta
Estou perdido, fadado a inconstância cruel
Condenado por sonhar demais