Amputado à revelia

Já fui ator e poeta,

depois queimei minhas guias.

Destruí meus relicários,

fiquei sem rima e sem meta.

Agora, sem calendários,

sigo somente uma seta

porque mataram meu cão,

envenenaram meu rio,

incharam de dor e frio

olho da libertação.

Mutilado no combate,

direi como Jean-Paul Sartre:

“Todo homem é um homem todo.”

Destilando pus a rodo,

amputado à revelia,

mato a noite em pleno dia,

alegremente no lodo.

Se alguma mocidade

me restar neste poema,

é a parte mais blasfema

desta mediocridade.

Peço então, por caridade,

que me cubram esse edema,

escondam em parte extrema

por pura cumplicidade.

Vou desvirtuando rotas,

espremendo a eczema

da dor simplória e serena

da vida dos idiotas.

Mergulho no lamaçal

onde pulula, grotesco,

o verme vil e dantesco

de minha dor abissal.

Como o poema que faço

para ninguém jamais ler,

o mundo não vai saber

o nó do meu embaraço.

As cartas, traço e retraço

na frente de uma igreja.

Maldita hora que seja

a desta quebra-de-braço

entre minha alma morta

e esse baú de esperas

onde queimei as quimeras

com o sangue da veia aorta.

www.fabiomozart.blogspot.com

Fábio Mozart
Enviado por Fábio Mozart em 10/01/2014
Reeditado em 10/01/2014
Código do texto: T4644396
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