Amputado à revelia
Já fui ator e poeta,
depois queimei minhas guias.
Destruí meus relicários,
fiquei sem rima e sem meta.
Agora, sem calendários,
sigo somente uma seta
porque mataram meu cão,
envenenaram meu rio,
incharam de dor e frio
olho da libertação.
Mutilado no combate,
direi como Jean-Paul Sartre:
“Todo homem é um homem todo.”
Destilando pus a rodo,
amputado à revelia,
mato a noite em pleno dia,
alegremente no lodo.
Se alguma mocidade
me restar neste poema,
é a parte mais blasfema
desta mediocridade.
Peço então, por caridade,
que me cubram esse edema,
escondam em parte extrema
por pura cumplicidade.
Vou desvirtuando rotas,
espremendo a eczema
da dor simplória e serena
da vida dos idiotas.
Mergulho no lamaçal
onde pulula, grotesco,
o verme vil e dantesco
de minha dor abissal.
Como o poema que faço
para ninguém jamais ler,
o mundo não vai saber
o nó do meu embaraço.
As cartas, traço e retraço
na frente de uma igreja.
Maldita hora que seja
a desta quebra-de-braço
entre minha alma morta
e esse baú de esperas
onde queimei as quimeras
com o sangue da veia aorta.
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