Habitam-me pássaros de luz sem luz

Habitam-me pássaros de luz sem luz

a tremular as madrugadas providas de vozearias infernais.

Aquelas em que sou a voz de muitos, tantos, tantos,

que me cantam ora em sinfonias celestiais

ora em gemidos, em vagidos dolorosos e tribais.

Pássaros assassinos dos minutos dobrados

nos joelhos das horas virgens, escorridas a preceito

em silêncios aprisionados p’las sombras

das alvoradas. Jogos em contraluz.

Habitam-me de igual modo o jovial e o serôdio,

o banal e o original. Habitam-me avós sem netos,

na ausência de afectos. Filhos sem pais, que os

perderam nos baixios, rios de mangais.

Lá onde a ofídia perigosa engoliu, folha a folha

a branda flor da rosa. Álacre e poderosa, canta-me

a brisa Lusa, aquela do vento, profusa, a deslizar

nas perras agulhas da encravada bússola.

No desnortear dos pontos cardeais. Cega, não

vislumbro entre tantos os sinais e guio-me insana

nos meros instintos animais. Dou voz à voz que

me canta, que me encanta, que me incendeia

a pele da alma, por dentro. Em noite de Lua cheia.

A voz cavada na goela do sentimento.

Hoje, magoada, solto de novo este grito:

Basta, não quero mais!

Mel de Carvalho
Enviado por Mel de Carvalho em 03/04/2007
Reeditado em 03/04/2007
Código do texto: T435682
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