Moras num rio

Moras num rio emudecido que corre da foz à nascente.

Moras num rio furtivo a deslizar na garganta queimada

em novelos dobrados. Brados soltos, gemidos tantos...

Um rio que, contido, não ameniza a secura dos prados,

que não azula as margens, gretadas, afogueadas.

Moras num rio feito de obscuridades afuniladas

onde as lampreias se negam em desovar.

Preferem a corrente corredia do alto mar ...

Que as tuas águas são enxurradas d’espumas

nos olhos brancos das raivas

e na extemporaneidade das palavras.

Moras num rio de olhos sonolentos, desatentos,

enrolados nos sargaços meninos de sargaceiros

enfadados.

Moras num rio que é noite, boqueirão imenso

onde apenas eu, apenas eu ... te aceno no brando e

vago gesto da cambraia do meu lenço...

Olha para mim! Olha-me bem de frente e vê,

que esta mão que te acena tem já as unhas violáceas,

que tenho igualmente a pele tisnada e a boca enregelada

de tantas vidas esperar por ti, nesta amurada...

(chegará primeiro que tu a morte a me buscar?)

Moras num rio com medo de ser mar!

Mel de Carvalho
Enviado por Mel de Carvalho em 02/04/2007
Código do texto: T434402
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