Duas Perguntas e Depois
Que beleza pode haver
no dorso daquela criança
colado no chão frio da calçada
sob a marquise, na madrugada
dessa noite enluarada,
esse treze de junho fatal,
quando o velho ouviu no hospital
que sua úlcera duodenal
nunca iria parar de sangrar...?
Que feiúra a existir
nos lábios vermelhos da moça
que mostram a alvura dos dentes,
mastigando de forma prudente
o pedaço daquela fraldinha,
enquanto a mente adivinha,
diante do nobre Chianti,
aquilo que a minha continha
justinho naquele instante...?
Que beleza pode haver
na alma da lagartixa
que por enquanto se espicha
ao longo da minha parede
pra logo depois se esconder
atrás da televisão...?
Na tela, a competição
enfadonha pelo prêmio maior.
Alguém conseguiu, é melhor
nessa hora chorar de emoção...
Que feiúra a existir
na chuva molhando a relva?
E eu, me escondendo na selva
que tens entre as pernas, me molho
de sal, de açúcar, de sol,
da água do meu colibri.
Não quero agora sair
de onde estou nunca mais...
Tô na paz...
O cheiro de incenso me acalma,
no fundo ele invade minh’alma,
caindo do décimo andar.
Deixando-me naquela esquina
da luz do sinal apagado,
bem junto daquela menina
do vestido azul desbotado,
e as tranças dos louros cabelos
crespos, talvez sarará,
me acenam com um doce bom-dia
e me levam com ela pra lá...,
pois lá sei que é o lugar
do qual não devia ter vindo.
Rio, 16/04/2005