Hoje acordei vento!
I
Hoje … acordei vento! Que o tempo, este que passa,
pelas frestas mal protegidas da fronteiriça vidraça,
vem mordido de um espaço túnel sem luz.
Que o pouco de tempo que me resta
me diz … Terá que ser assim! …
Acordei vento, destemperamento, sem que a
meteorologia tenha previsto tal estado…
Acordei vento, inanidade…
Capaz de dar fola ao barco, de dar fogo à peça …
E de lutar e por fim a esta tormenta!
Que depois de muito tempo,
sinto que sou fúria em movimento …
Habilitada a acabar com esta imensa saudade.
Sou raiva e destemperamento, sim!
Sou sentimentos belos mordidos na garganta
no recalque do desejo, na ausência do afago e do beijo.
Sou grito, ecoado no ventre do mar,
e em dorsos de gaivota a planar …•
Tanta doçura derramei sobre o teu fel insano …
Tanto tempo esperei…tanta lágrima salgada,
redonda densa, pesada, por nós chorei
na perene neblina de um olhar...
Que hoje, sem que perceba a razão… e pela primeira
vez em vários anos … todos os que te esperei,
todos em que te reservei no altar do meu coração
um espaço secreto para te acolher… e te ninar…
Em vários anos, acordei vento …
Sou vento de mudança…
Gostava de te dizer: - Esqueci! Mas não …
apenas … desisti de chorar por ti …
de chorar por nós...
E neste Inverno que se anuncia te digo:
- Não, não venhas mais, que no teu lugar,
cresceram musgos, silvas, urtigas … cardos.
Que não existem mais madrigais de esperanças …
Nem tenho mais para ti, arco-íris, bolas,
ou berlindes de criança.
Nem sequer te darei romãs para a sacola…
Que no espelho em que me projecto em lágrimas,
elas são agora … desenhadas a bolor.
São vidrados azulejos, estilhaçados, recobertos
de musgos … Paredes sem brilho…
Neste Inverno, não existe mais o fulgor mágico
do olhar-sol de quem te ama… Que o mataste
na faca e no gume … e na ausência.
E na desmesurada raiva com que te escondes,
no medo de amar. E de te dar …
Que, na tua insanidade, mataste toda a sua chama.
E se morta fico … prefiro assim! Porque morta
ando há tempos sem fim! Perdida de mim,
por amor a ti ...
Mas, sim, amo-te ... Mas que importa?
Hoje acordei vento … Vento Norte,
e a mim própria jurei que serei … forte!
Tal casca de árvore, que tomba …
Mas a árvore! Não verga!
E, sabes? … Descobri que não preciso mais de
te encontrar … porque, meu amor,
habitas para sempre em mim.
És de mim parte... eternamente!
II
Chove … as nuvens choram na dor
deste louco amor, que de se amar demais
se negou e se perdeu …
E, sem olhar um só momento, espiral em
movimento,avanço rumo ao vento!
Sem bagagem … parto como cheguei.
Com braços cheios de nada!
Sem sequer a boca marcada do sabor
de um só beijo!Choram as lágrimas
em derrocada … Tão longa a estrada.
Pesada a bagagem… a que trazemos
d'outra viagem … sofres… sofro…
Sofremos …
Parto!Na mão, uma mala cheia de ilusão.
Mil sonhos de doce algodão. Espuma e,
… esta eterna bruma!
Hoje acordei vento!