Carta de Sobrevida

Visão turva,

Pouco vejo

Sombra, Fumaça,

Lampejo

Audição comprometida,

Sangra ouvido

Estrondo, disparo,

Zunido

Vago cegamente

Errante, incerto

Esperançosamente,

Tateio por perto

Sinto medo,

Muita dor

Sinto frio,

Mas calor...

Meus pés não aguentam meu peso

Minhas mãos aliviam seu fardo

Mas logo, tampouco aguentam

Consola chão, bastardo

Força esvaiu

Perdeu relevância

Razão assentiu

Consonância

Quase como dormir

Deitado no chão

Desejando não sentir

Libertação

Nem zunido, nem fumaça

Apenas odores

Começo a sentir

Perfumes de flores

Ausente de dor

Ausente de ser

Querendo transpor

Deixar de viver

Sozinho, jogado,

Objeto sem valor

Tentando lembrar,

Recompor

Grito, choro,

Pavor

Amigos...mortos

Palheta sem cor

Crianças, mulheres,

Idosos, deficientes

Uns mutilados,

Outros dementes

Inferno na terra

Recordo

Em lágrimas,

Transbordo

Vida extraída

Expurgada

Motivo?

Jogada

Caminho acordado

Entre tantos dormindo

Não sei se dormem

Ou se estão fingindo

Caminho acordado

Entre tantos sorrindo

Não sei o que sonham

Mas deve ser lindo

Caminho

Ainda assim, caminho

Até abraçar o chão

Sozinho

Caminho

Até onde caminhei

Depois, sem ninguém ver

Chorei

Lágrimas de um soldado nada valem

Não na pátria que nasci

Só as mães de meus amigos

Sentirão mais dores que senti

Lágrimas misturadas ao sangue

Sangue de muitos que convivi

E agora, como indigentes

Jogados por aí

Esses que como eu

Agora não aguentam mais

Bastardos de sua pátria

Dedicados filhos sem pais

Recordei

Mas preferia nunca recordar

Me alistei

Com amigos que nunca vou recuperar

Agora, jogado ao chão...rezo!

Não por mim, não acho apropriado

Rezo contra a guerra

Contra o ódio infundado

Glória que ninguém quer

Nem mesmo escalão maior

Poderia ter nascido mulher

Ser poupado do pior

Medalha que ninguém usa

Depois que não adianta mais

Puxar gatilho ninguém recusa

Só não dá pra voltar atrás

Olhos fechados

Sem respirar

Corpo imóvel

Sem pulsar

Memórias de um soldado qualquer

Como tantos outros ao redor

Poderia ter morrido velho

Brincado mais com o filho menor

Memórias de um soldado qualquer

Como tantos outros ao redor

Poderia ter deixado mensagem

Em um poema menor