Traido pelo ídolo

I

Usando de minha própria carne como matéria

juntando tudo com as cordas de minha artéria

foi assim que esculpi as efígies, a maior delas

obra muito preciosa, acabava com esse artista

querendo dar lhe visão, eu feria a minha vista

com as minhas lágrimas, misturava aquarelas

Brincando de Deus, tive vontades muito estranhas

de ir te desenhar alguma rede neuronial verdadeira

ia tentando me convencer que tudo era brincadeira

uma hipnose que influenciava até minhas entranhas

Gastei horas a fio modelando uma boca meio aberta

eu queria porque queria, com a minha loucura imensa

que esses teus lábios frios proferissem a mais bela crença

de que, nos mares das incertezas, sua devoção era certa

A fim de que nem toda a minha obra fosse uma pura imitação teórica

coloquei algumas características inerentes das minhas noites soníferas

como por exemplo suas mãos atadas em regravadas preces infrutíferas

e sorri pelo fato de minha vida curta poder ter representação histórica

o idolo era a materialização incrível da fugacidade dos meus momentos

e teria que ter a grandeza maior que a grandeza de todos monumentos

Para suprir a falta de brilho da qual a minha visão critica reclamava

fui buscar certas pedras preciosas dentro das minas mais profundas

elas eram verdadeiros tesouros, caras medalhas do oriente oriundas

mesmo coberta do límpido jasmim, você nunca disse que me amava

talhando tudo milímetro por milímetro, no cumulo do meu afeto

eu procurava uma essência humana no âmago estável do objeto

O mármore já estava quase na forma final, e com zelo

naquela pobre imitação das suas sutis linhas circulares

a antiqüíssima tensão sexual que pesava os nossos ares

tentava com toda a força imitar as ondas de seu cabelo

A minha maneira particular, continuava naquela tentativa de perfeição

após comer pouco, dormir mal por vários dias, quem sabe uma semana

a minha musculatura a tremer, perto tanto da morte quanto do nirvana

tudo pronto, desde a curvatura da cabeça até a linha torta do dedão!

De repente, o corpo cansado celebra um sentimento para mim inédito

minha mão estava sangrando, porque trouxeste dor, mármore ingrato?

Assim, meus olhos foram descamados para a realidade única do fato:

via minha própria criação jazia estática, não merecia o mínimo crédito

II

Foi tudo tão rápido: sem meu planejamento, instintivo e instantâneo,

a brancura delicada da estátua assemelhava-se à um humano crânio

no meio do último abraço que ia dando naquela estranhíssima criatura

igual ao surto psicótico, esperava ouvir algum estalar das articulações

quebrar como se quebra elos metálicos de celas nas insalubres prisões

e apertava com ódio fora de minha pessoa a rigidez daquela estrutura

Pancada por dura pancada, a destruição era autorizada pela Natureza

tonelada de escombros de matéria cai, o postulado físico da gravidade

lembrando a poluição de dimensões antropológicas infestando a cidade

se espalhava os instintos animais de caça faminta pela presa indefesa

Por força dos instintos a qual me entreguei, ia me tornando num bruto

não agüentava guardar na laringe meu grito de inpensáveis blasfêmias

ao me manchar na dor causada, a energia gasta por todas fêmeas

e toda tinta preta que havia não era suficiente para pintar meu luto

ouvindo pensamentos mais contraditórios possíveis num sombrio coro

metafísicos cantores refrescavam a laringe com a água do meu choro

Na ânsia que psicologia nenhuma explica, a bati na força de um punho

pensava em te machucar me machucando, e pedras que lapidei tanto

cortava a frágil epiderme dos dedos: mais razões ainda para o pranto

e degredava toda a matéria ao estágio inicial que era o meu rascunho

era o espírito sanguinolento da guerra encarnado nos limites humanos

desapontado comigo mesmo por esculpir a estória dos meus enganos

Quando vi que nada mais restava, recolhi todos os instrumentos

não percebo que aquele ritual tinha se tornado numa espécie de vicio

ia ritualisticamente congelando o meu corpo nas bordas do precipício

os instintos irracionais de luta latentes rosnavam, ainda sedentos

o conjunto total das inteligências humanas não explicava tudo aquilo

consultava possíveis razões da angustia na memória apagada do asilo

Mirei olhos na porta , retângulo reforçado com madeira de carvalhos

querendo uma vida humana, com mãos feito conchas gritei um brado

mãos que por uma razão obscura recusavam o conceito de trancado

a fraqueza biológica julgava impossível reduzir o obstáculo em retalhos

mas que ironia universal! Nessa megalomania, o objeto que faltava: miniatura de ferro codificado, a chave aonde o cadeado se encaixava

No fatalismo total, levantei os dizeres do meu último fracasso pessoal

gastei todo vigor que tinha sendo a divindade falsa desse mundo irreal

regressando ao existente, vi o meu perfil numa esmeralda que restava

cabeça somente e totalmente ausente de conteúdo: e não raciocinava

Dia após outro longo dia, via corpos astrais na sua habitual revolução

enquanto o tempo implacável tornava o artista em um mero maltrapilho

sem saber o porque da mãe Natureza tratar como bastardo o seu filho

enquanto os destroços da estátua se assemelhava a minha condição!

Ernani Blackheart
Enviado por Ernani Blackheart em 11/11/2011
Reeditado em 23/12/2011
Código do texto: T3330618
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