Coração Infausto

Vestida de trevas te jogaste

Do oitavo piso do apartamento

Ninguém sentiu a tua falta

Ou lamentou a tua ausência

Estavas sem calcinha

E mesmo no estertor

Quando a dor e a morte

Te faziam companhia

(o vizinho de baixo contou)

suas pernas se abriam e fechavam

teu sexo nu oferecido aparecia

como se desejando um último

orgasmo. De ti se compadeciam

Nunca te cansaste da promiscuidade

Abusaste dos vícios e da sorte

Sem expectativas de lançaste

Nos braços alados do anjo da morte

Talvez numa viagem de delírio

Confiante que nos braços te tomaria

A gravidade foi mais forte com certeza

E tu no chão te esvaías

Em coma deliravas com a história da larva

Metamorfoseada em borboleta

O Barqueiro do Inferno chegou

Para conduzir tua alma

Olhaste para o Estige medrosa

Então a criatura negra pensava que esse rio

Existia apenas na mitologia grega?

Antes de partir no barco de Caronte

Tua alma ainda viu a face oculta

De teus herdeiros. Nenhum deles

Lamentava tua partida. Nenhum deles

Chorou. Uma grande tristeza e ânsia

De te se apoderou

E tu, uma última vez

Ainda cheia de temores e cólera falou:

"Meu ódio será sua herança"

Até depois da vida exaurir-se

Pipocam ainda as espigas de milho

As vinhas da ira. O princípio da vida

Que habitou o teu corpo

Assustou-se: pensavas que ias

Chocar-se nas asas tecnológicas

Do pássaro de aço em pleno vôo

Ainda tiveste tempo de ver

Aquelas pessoas sérias e caladas

Como se estivessem mortas

E só então sentiste a falta

De um carinho de mãos contagiosas

Que um dia te fizeram sentir-se amada

Tu, que detestavas a possibilidade

De ser afagada. Tu, que desprezavas

A busca de um amor consistente

Que falta agora te fazia

A aflição do desamor pesava

Nos ombros como uma cruz

Um ato consumado do calvário

O rabecão havia levado os restos mortais

E o porteiro, na falta do zelador

Limpava o sangue, maldizendo o serviço

Extra que ele proporcionou

Desejavas mudar o itinerário

Porque dentro de você alguma coisa mudou

Mas como voltar à vida nessa aldeia global

Que os milênios em nada modificou?

O fantasma chorava a carência

De uma mão amiga. Quem em vida te afagou?

Os cabelos, os braços, as coxas e a bexiga

A luxúria sempre te corroendo os pelos

Olhavas pela última vez os lírios dos campos

Eles não tecem nem fiam, mas como é bela

A visão dos Ipês. As flores amarelas e violáceas

Enquanto teu corpo exalava um péssimo odor

De que adiantava a mortalha de madeira

Ser feita do Ipê resistente à putrefação?

Que esperança poderia valer à mulher da rinha?

Carregas a submissão como uma mala

Podes ainda ver e ouvir as beatas tecendo terços

Em incansáveis e inúteis ladainhas.

Com a aura deslizaste para dentro

Da Igreja fria. Não sabias, mas estavas

Em tua missa de sétimo dia

Uma lagarta verde, centopéia, passeava

Por sobre a coxa de tua filha. Ela agora

Parecia-te tão feia. Teus traços nos dela

Delineavam-se. Seguia como uma cega

Teu exemplo torto. Desconhecia outro

Caminho. Outro provir. Diverso das tuas

Atuações em teu quarto. De detrás de uma

Teia de aranha observavas.

O pequeno artrópode descer da cabeça

De uma santa de altar.

Assustada tu te foste do lugar

E de debaixo de um fio de cabelo vias curiosa

Uma pulga atrás da orelha adolescente

E nada poderias fazer para mudar dela

O itinerário tão contraproducente.

Num futuro não tão longínquo seguiria

Ela teus passos. Sua biografia cheia

Daquele falso entusiasmo. De sorrisos

Orgulhosos dos dentes grandes e brancos

Que os vermes agora, aos bocadinhos

Corroíam. Quantas coisas por fazer

Por ti e pelos outros que não mais seriam

Feitas. Teu lugar estava te aguardando

Na fila enorme à beira do Estige, Caronte

Cobrava-te a presença. E tu, num último

Gesto de curiosidade, lias a manchete e a

Notícia em destaque no jornal.

Um pai de família que talvez conhecias

Atirou na cabeça após matar os três filhos

E a mulher. Uma pergunta surgiu, do tipo

Que nunca dantes fazias: os seres humanos

Matam os de sua própria espécie. E se matam

Também. E tu, que nunca foste de ti mesma

Nem de ninguém, atormentada entras na fila

Das almas no Além.

De que adiantava agora saber

De todas essas coisas, e querer

Mudar esse destino selado pela

Aziaga? Que poderiam aquelas

Orações e missas por ela fazer

Por ela que passara a vida toda

A chafurdar em tudo que é imundo

Como se estivesse a viver no mais

Feliz e virtuoso dos mundos

Nas trevas da luxúria, na loucura

Dos sais do mais torpe e interesseiro

Prazer. Fanática dos sete pecados

Capitais. A estupidez e a ignorância

Risonha. Como se abrir as pernas

Fosse a única coisa nessa terra

Que por toda vida pôde aprender

Em vão quis fazer valer as forças

Do coração. Era tarde demais para

Qualquer coisa. Sentiu os vapores

Venenosos do Érebo, e visitou pela

Última vez o próprio corpo putrefato

Sob sete palmos de chão.

DECIO GOODNEWS
Enviado por DECIO GOODNEWS em 17/04/2010
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