memória
Tenho medo
medo medo medo
tenho medo
medo
sono
não consigo abrir os olhos
músculos fatigados
chuva
estranhamente chuva
cachorro jogado
na sarjeta, morto
um milhão de cães
endurecidos, mortos
não sei o que sinto
raiva
ansiedade
colateral efeito perfeito
amor
endurecido
jogado nas sarjetas
pombas brancas
vermelhas de sangue
reviro a memória
vou até onde estão
os brinquedos dilacerados
da infância
o primeiro pedaço de fruta
a primeira ausência
o primeiro beijo apagado
cães
o filhote, o canário na gaiola
a escada extensa
não sei o que sinto
um amor insuportável
querendo sair
respirar
a lembrança
da primeira Bíblia
da primeira viagem
quando existo
nas tardes de domingo
sem Deus para o consolo
quero expurgar
da mente
as praças, crianças brincando
sol de cinco horas
famílias indo ao parque,
cães
cães mortos
tenho medo
da grande avenida
de colidir com as obsessões
em plena rua
frontalmente
e, num traumatismo grave
desistir
da luta insone
do gosto de teus lábios
do amor nas palmas
de tuas mãos
um grande medo
dantesco
dostoievskiano
como um crime
às ocultas
um receio, hesitação, medo
da vida
de viver
e se tudo fosse assim
amargo
e imutável
como o cachorro morto
na beira da estrada
sem dono, sem afago
o que faria minha vida
sem gosto, sem vontade
atirada ao vento emudecido
para poder existir
respirar? ... 07/10/03