AMOR DE PAPEL

Passava das quatro da manhã.
O sono roubado era o vilão do dia nascendo.
Não sabia como contar.
Sabia somente lamentar por não poder evitar a dor aproximada.
Há tempos aquele moço por ela tão amado passeava despreocupado com inúmeros outros amores.
Nada disso era surpresa.
O dia de magoar era marcado por ele numa espécie de calendário sádico.
Vivia assim: amando e magoando a quem dizia haver amado.
Quando a união dos dois se concretizou, o fim já estava delineado.
Como uma espécie de assassino inescrupuloso, aquele homem ia escolhendo suas vítimas a partir do passado.
Muitas delas levavam anos para ser cativadas.
O prazer mórbido de suas conquistas estava nisso.
Colecionava amores. Assim ele pensava.
Não se incomodava com o ódio do depois
Nem com as mortes provocadas pela sua passagem.
Era um anjo anunciando passamentos,
Ainda que pudesse enganar com enormes doses de doçura.
E lá estava ela prestes a ser interrompida em seu amor inventado.
Muitos poderiam até sentir pena,
Mas o desengano fora logo revelado. Logo no primeiro olhar.
Mais cedo ou mais tarde a frustração estaria postada no quintal.
Quis até sentir pena, mas ela não sentiu pena das outras.
E, sendo assim, virei as costas para a mulher, deixando que chorasse pranto tão particular.
Pobre criatura.
Em meio ao choro desconexo, ela balbuciava a pretensão de ser diferente.
Por quê?
Ele era daquele jeito. Ser cravejado de balas perdidas, sempre de mãos dadas com os seus mortos.
A morte de seus amores lhe servia de alimento.
As promessas repetidas, com o passar do tempo,
transformavam-se em restos mortais de nada. Simplesmente nada.
E ela ali. Sem poder acreditar no seu papel de vítima.
Duvidando do óbvio.
Querendo ressuscitar o amado com seus beijos já tão amargos.
Sem dizer palavra, ele pegou as malas – sempre prontas – e deixou o molho de chaves
Na mesa da sala de jantar.
Aturdida, a mulher tentou alcançar a porta.
Sem esboçar pena, ele a empurrou para longe.
Podia-se ver o asco a escorrer pelas suas veias alteradas.
Pronto.
O funeral começou a ser preparado.
Outra vez.

 
Iza Calbo
Enviado por Iza Calbo em 20/07/2008
Reeditado em 22/02/2021
Código do texto: T1089732
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