Olho-morto e Reis de Copas (a peregrinação I)
Olho-morto: Onde esteve, amigo meu?
Vejo que o coração que trás no peito não é seu
Sei que esteve enamorado e entorpecido
Sei que todo o amor agora está retraído
Reis de Copas: Vaguei por aí alugando meu amor
Me perdi na cama de certas damas sem qualquer pudor
Deitei pela estranha busca das coisas que deixei de sentir
Fui furtado meu amigo, foi-se todo o meu devir
Olho-morto: Aí de ti! Mas não foi por falta de aviso!
És mesmo o poeto do coração partido!
Nada aprendeu com meu cinismo? vives aí agora improviso...
Faz alguns atos, nenhuma grande peça... haja poeta tão contido
Reis de copas: Sim, amei tudo que podia em uma grande peça
estou falido! Falido por tudo que senti, amei mais do que podia
Amei mais do que cabia, tudo em troca de promessa...
Olho-morto: Promessa de que, tolo?
Não entendes que não se amestra o que sentes?
Haja estupidez! Te mete agora à domar serpentes?
Reis de copas: aí, até quando me culpará pela negligência!
Não entendes que nem todo teu cinismo consola coração perdido?
Nem toda matemática, ou ensaio profundo, qualquer outra inteligência
Aliás, não há prudência que possa lavar coração encardido
Olho-morto: Certamente não entende a advertência
Não há amor com prudência, nem amor com cuidado
Só há abismo e descaso, sonetos de um apaixonado...
Não há lei no amor, isso sabemos, o fim do amor é sua própria penitência
Reis de copas: E tal pena me agrada cumprir...
Não vê, amigo meu? Que é o tédio que me consome
Ignoras que o que me machuca é o vazio que me engole?
Podes até viver seguro no dia-a-dia protocolar. Mas, pode sorrir?
Olho-morto: Concordo nisso, morre-se de tédio ou coração ferido
Reis de Copas: Morremos no silêncio eloquente de um antigo amor
Olho-morto: E morremos sem saber se já estivemos vivos...
Reis de copas: e vivemos sem saber se estamos mortos...
Olho-morto: E, bem, do que mais se queixa, amigo meu?
Reis de copas: por amar o passado de quem só condena o meu futuro.
Olho-morto: O desamor também não contém. O que ainda sobrou teu?
Reis de copas: nem as memórias ...ela ainda as ocupa. Fim prematuro
E continuaram vagando pela noite, na peregrinação do sentir
O poeta cínico e o trovador da emoção, cada qual com seu devir
É que o amor é um desses ímpetos que se conhece ausente ou sobrando
Uns morrem de fome, outros engasgados dele, disso todos entendem
O amor ou é fera indomável, ou é um elegante desconhecido
Ou te fere por acontecer, ou te fere pela indiferença em não lhe cortejar