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...tinha um sorriso lupino, de caninos reluzentes e afiados, que realçavam o tom sarcástico e perturbador; a franqueza com que me sorria seus caninos, formando, junto aos olhos vampirescos e de tom inocente, uma imagem que se equivalia o som das sereias cantando. Seus olhos, de súbito, adentraram na minha alma e tomaram conhecimento de todos os segredos, que eu, na mais íntima sala anímica, mantinha; adentraram e tomaram posse do meu ser, havia começado uma transfusão espiritual, à qual eu apenas aquiesci e me deixei desvanecer, que me fazia sentir como um vaso vazio, um vaso sem flores; e pela primeira vez desde a inocência da minha infância, conseguia me livrar daqueles crisântemos tristonhos que amarguravam meu semblante: eu, que necessitava sempre sofrer, dei fim ao meu martírio por um instante; fiquei ébrio e dormente; tudo que eu precisava era continuar o fluxo daquela transfusão melíflua até alocar-me por completo no interior dela. A transfusão ainda não havia terminado quando pude, por meio de seus olhos, ver a mim mesmo; como podia ela ter dedicado a dádiva do seu olhar para tal figura tão depreciada? Eu me via por meio dos seus olhos e não havia à minha frente, nem aquele coração que eu cultivei tanto, nem meus ideais, nem minha filosofia, nem meu espírito, havia apenas um vaso anacrônico e mal cuidado, que só não estava em piores condições porque se livrara um instante atrás, daqueles nojentos crisântemos e ficara vazio; havia apenas a figura que viveu demais no mundo que só existiu dentro de si, e por mais que quisesse interceder por todas as criaturas que sofrem, afundava-se, mais e mais, todos os dias, numa misantropia cega; e dentro desse universo imaginário e paralelo não percebia que o recipiente que guardava seu caráter tinha se deteriorado e perdido o valor. No meio da minha introspecção, a transfusão retrocedeu, e num solavanco agressivo senti-me sendo atarraxado de volta ao meu corpo, para onde desejava nunca mais voltar. Conforme fui sendo realocado, voltava a sentir as aspirações penitenciosas e um vertiginoso asco que quase me pôs de joelhos, quando me vi refletido nos olhos vampíricos dela com a mesma expressão desajeitada que a pouco via por meio daqueles mesmos olhos. A transfusão não só retrocederá a ponto de socar-me goela a baixo, mas também fazia a transfusão dela para mim, e dentro daquele transe onírico, ela quis se mostrar, através dos meus olhos, como um súcubo sedento e impiedoso, sentenciado a ser nômade por toda a sua solitária existência, seguia se alimentando e se despedindo, a cada adeus, mais vulnerável e despedaçada, incapaz, porém, de, nem sequer, olhar para trás...