Aqui
a casa cor-de-rosa já não é sua.
cor-de-rosa ainda, não mais sua.
viajou.
como uma quase fugitiva
deixou só um até logo, medíocre
pregado na janela a dedos indolentes
- sem qualquer afeto
molhado das lágrimas acres
que sequer tiveram tempo de chegar ao chão
sujo da lama que deixou.
e mais algumas coisas penduradas
fotografias
algumas mágoas e marcas do tempo vivido de faz-de-conta
dores muito vivas, pungentes
memórias acinzentadas artificialmente.
ficou tudo pela metade
bolo meio assado, jarra meio cheia,
página meio escrita, porta entreaberta,
amor em construção.
viajou...
e fez questão de obstruir, com veemência, os ouvidos
não deixar penetrar nenhum aviso
nenhum sussurro dos ventos que vinham de lá
e que alertavam, sutis
que ela não viajara... ela se fora
que não era um até logo
era até sempre
até nunca.
a frase mais obviamente clichê
estronda agora por todos os becos de sua mente
rasteja como uma serpente vil
pelas veias já dantes recobertas de pó
gritando para causar-lhe remorso
que o tempo passa, aqui, lá, dolorosamente igual.
não era ela quem mudava,
era o mundo inteiro ao seu redor.
voltou.
já não era mais tempo, mas voltou.
então, quem diria...
tentou entrar e a chave não coube
pensou ter errado de endereço,
mas era ali, inconfundivelmente ali
as mesmas paredes, a mesma tinta, os mesmos quadros e imperfeições
olhou para cima e viu, pela primeira vez, aquele céu nublado
então uma fina chuva de realidade foi molhando seu rosto, mansa
mas no seu eterno vício de se enganar, acreditou que era nuvem passageira
os escassos pingos eram agora contínuos e insistentes
só quando muito encharcada entendeu que chovia.
mas o sol penetrou uma fresta quando, trêmula, bateu à porta
e ele abriu.
seu coração, já há tempos descompassado e moribundo
se encheu de esperança
sorriu, transbordou.
mas entrar como visita na casa que foi tão sua
é como sair em alma, em vida
para longe,
e encontrar, de regresso, inacessível seu próprio corpo.
foi exatamente assim.
o cheiro dos móveis
o latido dos cães
a textura dos lençóis
tudo tão igual, meu deus, que chega a torturar
por um breve instante conseguiu sorrir, leve e cegamente
fechou os olhos e se entregou àquelas lembranças que, mesmo palpáveis e presentes
eram, agora, nada mais que lembranças
o tempo passou - olha só! - aqui também
embora a casa tenha a mesma cara de outrora,
outros corações batem
outras histórias e beijos acontecem ao cair da noite
outras novelas passam na televisão.
mesmo cenário, personagens outros.
então a chuva invadiu o telhado e, numa enxurrada, arremessou-lhe à calçada
não teve tempo de se proteger
e agora nada, desesperada, para lugar nenhum
a vontade que lhe dá, de simplesmente parar de nadar
é suplantada, felizmente, pelo desejo de ver o sol tocar sua pele outra vez.
até quando terá forças para subir a correnteza, não se sabe
talvez encontre barcos, bússolas, dias de calmaria
talvez um dia a chuva tenha, discretamente, parado de cair
e o calor do sol brilhe em seus olhos com outra cor
outra intensidade.
(Janeiro, 2011)
*Referência utilizada no título:
https://www.youtube.com/watch?v=fl0qz_mhg_A