Não-amanhecer
Tem dias que amanhecer
é abortar o infinito
com que sonhávamos.
Não queremos acordar.
Não queremos a realidade.
O som, a fala ou os seres
borbulhando vida a nossa volta.
Num metabolismo louco e voraz.
As cores nauseadas do cotidiano.
Manchando a visão,
Borrando o horizonte
de matizes estranhas.
Transformando formas e conteúdos.
Tem dias que o sol nascendo
É lembrete que estamos morrendo.
Um pouco a cada dia.
A cada minuto.
Sem explicações.
Apenas cumprindo um ciclo da vida.
Ou de morte.
Atávicos e inexoráveis seguidores
sem escolha.
A dança lúgubre do tempo
Vai depauperando rostos, corpos e
tiranias.
Também os tiranos morrem e
perecem.
Todos os mortais são finitos e
banais.
Os poderosos e perdedores.
Os enigmáticos e os óbvios.
Os sábios e ignorantes.
Os lindos e os feios.
Os dorminhocos e insones.
Os mortais e os espiritualistas.
A noite com seu véu de penumbra.
Embala a magia de não ver e apenas
imaginar.
Todos nós finitos aguardamos
ansiosos pelo merecido esquecimento.
Em fazer parte da paisagem.
Enfincar-se nas entranhas da terra.
Comungar com o chão os pecados.
Ajoelhados ou em ritos da morte.
Solenes ou comuns.
Então nascerão de novo.
Ou morreremos definitivamente.
Nascerão novamente outros seres.
Repetir-se-ão nossos erros, pecados e fúrias.
Scripts inteiros serão repaginados.
Mas serão cumpridos na íntegra.
Como se fossem eternos.
As mágicas palavras silenciaram
os culpados e purgaram os pesadelos.
Nascerão com o amanhecer
Seja pálido ou dourado.
Nascerão com as noites e,
ainda nas trevas.
E a luz refletirá a fé
ou o ciclo.
Secreto, óbvio e fugaz.
Tem dias que é preciso urgentemente
não amanhecer.
E, deixar brotar a poesia natural
impregnada e contaminada
por nós.