CABOCLO GÉRSON
Conheci o caboclo Gerson na treze de maio, era um negro velho, do tempo do império, devia ter mais de cem anos, mais estava lúcido, e fazia o transporte de mescadorias em uma carroça, puxada por um burro tão velho quanto o dono, de nome javali. Não sei por que gargas d'água eu tinha verdadeira admiração pelo velho, eu era menino e geralmente tinha era medo dos mais velhos. Me lembro que o velho caboclo Gerson (assim era conhecido nas redondezas), andava sempre descalço, acho que seus pés jamais foram cobertos ou protejidos por sapatos e ou similares, e ele tinha enormes calos salientes que faziam com que seu pé parecesse com um pé de pato. O burro javali, há muito tinha deixado a condição de quadrúpede e era muito mais do que isso, pois obedecia fielmente o velho escravo, fazendo o transporte de uma forma quase que matemática e certeira. Não errava uma manobra segue, uma parada ou até pasme uma re quando era preciso, somente ao comando vocal. Seu Gerson me contava como era a vida de escravo na senzala, seu sofrimento, sua luta, e sua perda maior, um amor impossível, que ele conquistou quando jovem, uma india feita escrava linda de viver, assim dizia ele, de nome birizinha, acho que tinha alguma coisa com bezerra, ou coisa desse tipo. Ele me contou que o capitão do mato, Augusto Botelho, levou birizinha para sua casa, quando soube da paixão da indigna pelo escravo negro. Seu Gerson veio nos últimos navios negreiros que veio da Bine Guisal, um país ao norte da África, era da tribo dos urutucas, predominante no trabalho no campo, muito explorados nos segmentos da escravidão por comerciantes turcos que circulavam no norte da África. Depois de birizinha, Gerson nunca mais se relacionou com mulheres em sua vida, virando um velho lobo solitário, o que fazia que as mães da época não deixasse as crianças conversarem com o pobre velho, mamãe não tinha conhecimento do nosso relacionamento, e o velho caboclo Gerson passava horas e horas me ensinando as magia da África. Ele me ensina à ficar invisível, e isso me foi de uma utilidade ímpar na minha infância, ele também falava que eu só podia ficar invisível enquanto menino fosse, depois de crescer eu perderia essa capacidade. Ele me ensinava a lutar, a luta dos tigres, com a leveza das garças, o que também foi muito útil, pois me tornou muito poderoso no colégio Santo Tomaz de Aquino, onde cursei o primário, pois eu era temido por todos os alunos, incluindo aí os maiores. Ele nunca dizia onde morava, ninguém sabia quem ele era, não tinha documentos, simplesmente de uma hora pra outra ele desaparecia, ele, o seu burro e a carroça. Eu ficava pensando se ele se tornava invisível, e se podia tornar o burro e carroça também. Certa feita peguei o velho falando com o burro, contando da sua saudade de birizinha, acho que foi a primeira vez que vi e ouvi um burro falar, quando eles me notaram pararam e seu Gerson deu um sorriso amarelo e desfaçou. Um dia quando fiz dez anos o velho desapareceu do mundo, nunca ninguém soube o que aconteceu com ele, eu fiquei um ano todo triste, um dia eu estava sentado na beira da calçada brincando com minha cachorra salsicha fifi e sem vê e pra quê ela falou comigo. Não fique triste, pois Gerson está muito bem, voltou pra sua terra natal e está dizendo pra você não se preocupar mais com ele. Depois disso pelegei para a fifi falar de novo, mais ela nunca mais falou, até morrer atropelada por um jipe, na rua Mário Mamede 876.