Jandaíra e o Rei-Patrão

Rio Piriá (concepção e primeiros versos), Curralinho, 06 de novembro de 2016.

De repente uma história

Pra ajeitar tua memória

Confundir se é verdade

Espantar a mocidade

Irei contar e terminar

Das bandas do Piriá

Lá dos tempos do patrão

Tempo sendo escravidão

Certo homem investiguei

Que até se achava rei

Rei contrário à Salomão

Maltratava meus irmãos

Era mesmo coronel

De manhã servia fel

Fel salgado de suor

Nem em novena tinha dó

Todo dele eram os peixes

Toda lenha lhe eram os feixes

Comandava na madeira

Comandava na carteira

Do colhido eram três quartos

Pro Patrão tudo anotado

Na fila da Eucaristia

Primeirão na hipocrisia

Dizia samaritano

Só que era um pé de pano

E os marido humilhado

Se sabiam tudo calado

Caladinho pro açaí

Pro Rei-Patrão ir dividir

Tal tristeza das famílias

Entregar a própria filha

Patrão-Rei deitou Zulmira

Desgraçado pegou Elvira

Tão inocente que era ela

Da idade tão quimera

Que o seu pai não suportou

Pegou o cano e se armou

Quando o Patrão lhe encontrou

Um capanga o tocaiou

Pai ó pai de Elvira

Do couro tiraram envira

Seu resto foi pendurado

Pra ter o medo reforçado

O Patrão sumiu com Dora

Até hoje sua mãe chora

Negou-se ao Rei -Patrão

Jogada agora sem pão

O pão não viu Ananias

O teto não viu a Maria

O lápis não viu José

Só um tabaco rapé

Sobras vestiam Aninha

Sobras vinham da farinha

Deus um dia a Justiça

Domingo tudo na missa

No azul os periquitos

No chão gemem os aflitos

De escape um camarão

De escape uma oração

Reparava vil patrão

Proibido o sermão

Justos bem aventurados

Sedentos mal saciados

No dia de todos os santos

Os céus ouviram os prantos

E chegou uma família

Do outro lado, outra ilha

Mas não veio só pobreza

Veio também uma beleza

Da jovem amorenada

Com vista amendoada

Adocicada a retina

De postura tão fina

Os rapazes na querência

Se batiam com frequência

Presentes ramos de flor

Tantas cartas de amor

E a bela Jandaíra

Só olha pouco suspira

Inspira sua leitura

Expira sua candura

Boceja e sai doçura

Sorriso os males cura

Patrão-Rei quis conhecer

Tal donzela e se valer

Ser-lhe estreia de homem

Satisfazer sua fome

Mas tal rosto bonito

Lhe deixou meio esquisito

Um Patrão não patrão

Naquela situação

Diante de uma mulher

Domina-o sem querer

Patrão-Rei a cobiçava

Tomar ela pra sua casa

Jandaíra tão gentil

Sua porta então abriu

Seu pai cedeu a cadeira

A mãe lá na cristaleira

Pegou um copo do melhor

Foi água, café em pó

Com bolacha mas nem tanto

"Vai chazinho capim santo?"

E uma cuia de açaí

Quase um litro tinha ali

Do açaí que maravilha

Tudo veio bem tuíra

E uma rede bem montada

Com cantiga assoviada

Da mocinha Jandaíra

Caiu o Patrão na pipira

"Jiboiou Jiboiou

Esse homem jiboiou

O açaí lhe fartou

Escapei do não-amor

Jiboiou Jiboiou

Esse homem jiboiou

O açaí lhe fartou..."

Jandaíra assim cantou

Quando o Patrão acordou

Tudo em volta estranhou

Tava na sua casona

Pois lhe deram uma carona

Foi dormida de três dias

Chega a costa lhe doía

A cabeça que pulsava

A barriga que roncava

Os braços de tão dormente

A raiva rangia os dentes

"Cadê aquela pequena

To com a gota serena

To reinando com aquela

Quero judiar com ela

Pega um rolo de sisal

Que a faço um animal!"

Desce o rio o Patrão-Rei

Ele era a grande lei

Pisou na ponte de tábua

Expôs toda a sua mágoa

Deu um tapa no paizinho

E escutou um sussurrinho

No olhar de Jandaíra

Pára tudo e se admira

Senta brabo neste banco

Um chazinho capim santo?

Açaí naquele balde

Com peixinho pois se esbalde

O Patrão desconfiado

Come tudo beliscado

Mas o açaí em uma caneca

Deu-lhe vontade a soneca

"Jiboiou Jiboiou

Esse homem jiboiou

O açaí lhe fartou

Escapei do não-amor

Jiboiou Jiboiou

Esse homem jiboiou

O açaí lhe pesou..."

Jandaíra assim cantou

Na cantiga da cigarra

As guaribas na sua farra

Acordaram o Patrão-Rei

Sete tardes eu contei

Só num pulo que sacode

Numa raiva que explode

"Peguem tudo a espingarda

Botem até a sua farda

Que hoje o sangue espirra

Não quero em pé a vila

Metam fogo toda roça

E arder até as fossas

Não dispensa nem o tatu

Pro banquete do urubu

Arrancando as meninas

Destinar pra libertina!"

Os jagunços tudo bruto

Iam fazer da vida um luto

Casa em casa não acharam

Os sofridos não estavam

Movimento se fizera

Mas não era na capela

Não eram daquele mato

Vinham sons de um barraco

Quando entraram a surpresa

Uma teba de uma mesa

Com moças na cabeceira

Umas caras bem faceiras

Jandaíra toda bela

E um monte de tigelas

Num oferecer sorrir

Cem tigelas de açaí

"Não adianta formosura

Nem tudo isso de fartura

O mandado foi bem posto

Ninguém vive tenho gosto

Patrão-Rei verá o sangue

Fazer lama fazer mangue

Eita cheiro de tuíra

Açaí meu olho mira

Nós num quer se acalmar

Pra que ofertar esse chá?

Nessas mãos tão pequeninas

Que pena ser suas sina

A minha alma tão medonha

Pra diminuir a vergonha

Vamo beber do mel

Do açaí que é um céu"

"Jiboiaram Jiboiaram

Esses homens jiboiaram

O açaí lhes fartaram

Nossas carnes escaparam

"Jiboiaram Jiboiaram

Esses homens jiboiaram

O açaí lhes pesara..."

Moçarada assim cantaram...

Jagunçada acoitada

Já se viu paralisada?

Duas luas céu riscado

Levantaram abobados

No meio do buçuzal

Acauã cantando o mal

Uma cruz ali fincada

E uma imagem retratada

Foto que se admira

Foto do pai de Elvira

Justiça Elvira o pai

Dizendo "na mata entrai"

"Convido pro rumo loucura

Fazer comigo a misura

Pagar as mortes matadas

Cês devem às almas penadas

A conta é andar ao léu

Sem casa, sem pátria, só fel

Na boca a pena afinal

Açaí com gosto parau

Pitiú meio ensanguentado

Daquele meu corpo lembrado"

Fugidos os capangas

Patrão-Rei na vingança

Só tinha na mente a cuíra

Possuir sua Jandaíra

Era certo tal gastura

De uma raiva tão pura

Que sua posse definhou

Que o cupim se alastrou

Que seu barco encalhou

Que sua gota inflamou

Sua barba ser branca

Agora só uma carranca

Não tinha mais moral

Sozinho não era o tal

Foram embora os escravos

Que sorriam libertados

"Desgraçados de vocês

Se não são mais meu freguês

Vou mandar a maldição

Vez em quando um patrão

Vem a vocês perturbar

Vem para azucrinar

Para sempre um poderoso

Com dinheiro e garboso

Pra ir pegar seus filhos

Tirar eles dos trilhos

Tentação mil promessas

Ensinar o que não presta

De querer endinheirar

E aos outros dominar

Que repete o meu refrão

De querer ser Rei-Patrão"

"Mas antes de eu partir

Meu orgulho foi ferir

Vou amarrar numa envira

Aquela tal de Jandaíra

Pra nunca uma mulher

Se falar e bem-dizer

Que domou o Patrão-Rei

Essa fama manterei

Vou esperar na butuca

Se os pais baixarem a nuca

Vou pegá-la e esconder

E maldades vou fazer

Para sempre uma escrava

Só comer Mandioca-brava

Só dormir numa ripeira

Só beber água de beira"

E num é que vacilaram?

Os pais que passearam

Jandaíra assim sozinha

Ajeitando a unhinha

De repente um agarrão

"Calada se não se não!"

Uma faca na cintura

Na donzela fez ranhura

Por meio do aturiá

Das tobocas e ingá

Pra uma canoa batelão

A noite de luarzão

Patrão-Rei em sua fúria

"Tira água com essa cuia!!"

E partiram canoando

Devagar quase parando

Finalmente o Tapiri

Só os dois que por ali

Eram gente duma mata

Sendo virgem intocada

Pra servir de cativeiro

Rei-Patrão que altaneiro

Esbraveja em ameaça

"Tua família minha caça

Tua vila meu brinquedo

Pra eu fazer de todo medo

Caso tu negar meu fogo

Escangalho o teu povo!!"

Jandaíra olhou séria

Refletiu sua miséria

Posição da bem ereta

Uma linda silhueta

Jandaíra assim falou

"Do amor que eu te dou

Só tem condicionado

Ir buscar no almoçado

Açaí que eu não largo

Café do bem amargo

Roupa de médio linho

Chá de capim marinho

Põe aqui que eu disponho

Aquilo que te faz sonho

Meu cheiro te embriaga

A pele pedaço cada

Um gosto de tracajoa

A curva que te é boa

Qual chuva pra te esfriar

O sol pra te esquentar"

Patrão-Rei se animou

Açaizal então trepou

Buscou só do bom cacho

Mostrar como era macho

Caçou tatu bem gordo

Carvão de tronco morto

Assava para sua musa

Não podia ter recusa

A esperar no Tapiri

Vinte cuias de açaí

Uma vasilha fumegante

Ambiente tão amante

"Tudo pronto tudo enfim

A sustança para ti

Até que o galo canta

e evitar a cara branca"

Rei-Patrão se benzeu

Até uma vela acendeu

Jandaíra a luzir

Desde o rio Ituxi

Desde rio Araguari

Desde o rio Arari

Que tarde boa aquela

No Piriá foi a mais bela

Patrão-Rei mal reparou

As cuias que tomou

O chá que embicou

Farinha que emborcou

Que o fardo até secou

A donzela se abaixou

Seu perfume exalou

Cabelão escorregou

Um sono mais profundo

Maior que houve no mundo

Rei-Patrão pesca pra cá

Patrão-Rei pesca pra lá

Nublada a sua vista

Enxerga sua benquista

Jandaíra sentada na rede

Um canto bonito sucede

Patrão dá o seu bote

Mas erra a sua sorte

Jandaíra tão corisca

Se sai, sorri e pisca

Patrão agora um nada

Na rede tão amaciada

Punho ali balançante

Ninou a voz sussurrante

E o calango estopô

A cabeça enfim cambou

"Jiboiou Jiboiou

Esse homem jiboiou

O açaí lhe fartou

Escapei do não-amor

Jiboiou Jiboiou

Esse homem jiboiou

O açaí lhe pesou..."

Jandaíra assim cantou

De repente a história

Pra ajeitar a memória

Confundir se é verdade

Desafiar mocidade

Todo ano se arruma

Jandaíra se apruma

E num certo Tapiri

Chega a rede a puir

No balanço de uma vida

Manter aquela dormida

Rei-Patrão e sua siesta

Eternizada a festa

Eternizado o sono

"Não mais temos dono!!

E se estamos acordados

Nunca mais uns dominados!!"

"Crescer no mais ativo

Crescer tudo coletivo"

A moral que se refira

No voo da Jandaíra

"Liberdade liberdade

Minha gente liberdade! !"