Arte e dom

Ultimamente tenho me alimentado de livros. Autoras e autores de todo canto do mundo têm me servido de comida há algum tempo. Quando comparo os livros à comida, não é do modo sentimental daqueles que comparam alguma paixão ou vício ao ar que respiram. Comparo pelo tempo que se leva pra comer e, no meu caso, pra ler. Rápido. Cinco dias e já era “A Cidade do Sol”, mais três e lá se foi “A lista de Schindler”. Nessas horas penso se ler é uma maneira de fuga, de querer conhecer mundos melhores ou piores. Uma forma de cimentar um vazio, que depois racha e exige mais remendos.

Ler e escrever. Dizem que este último é uma forma de arte, mas não creio que todo mundo que escreve pense ser um artista. Quem escreve, antes de tudo, quer externar o que não pode mais ficar dentro. Escolhe um gênero, uma maneira de cuspir tudo,e pronto. É um alívio. Às vezes é sujeira, mas olha que coisa bonita esse negócio de arte: depende sempre do ponto de vista. O que você faz é sempre arte pra alguém, mesmo que seja comida ou lavar roupa.

Ela lava louça como ninguém! Você já comeu a torta que ela faz? Precisa ver que coisa mais linda a toalha que ela bordou. Quem tem que cortar a grama é sempre ele, porque eu deixo falhas, ele faz perfeito. Mas que criança mais linda vocês tiveram!

Arte não precisa ser teatro, música, literatura, cinema ou coisas eruditas, em exposições nas metrópoles. Ser engenheiro é uma arte. Ser técnico em alguma coisa é uma arte, porque dizem que toda arte implica uma técnica. E, sendo assim, tudo tem uma técnica. Então, tudo é arte.

Trocar fraldas é arte, do mesmo jeito que tocar violão, ser professor de patchwork, ser costureira, esportista, marceneiro, mãe ou catador de latinhas. Tudo isso demanda paciência, amor pela profissão e alguns chamam as facilidades e os gostos de dom. Eu penso que arte e dom se confundem, são a mesma coisa. Se o dom existe, o resultado vai ser arte.

Mas por que toda essa conversa? É que às vezes tem umas coisas que coçam na mente, umas perguntas que ficam ali, pulando, fazendo graça. E aí tudo de mistura, vira um emaranhado de coisas diferentes, que, na verdade, se unem pra formar uma coisa só. Como já dizia um músico, o tudo é uma coisa só.

A minha angústia de precisar ler pra extirpar sei lá o quê, vai criar aquelas rachaduras que comentei no início. Aí vem um pedreiro-escritor e cimenta tudo pra mim. Depois vem outro que racha, faz um estrago e sai rindo, sem se importar com os pontos de interrogação que quebraram o que era sólido. Nessa hora aparece um pedreiro-pintor, um pedreiro-ator, um pedreiro-leitor e coloca algumas coisas no lugar.

É um ciclo de ajuda. É humanidade. É egoísmo, às vezes, mas, acima de tudo, é arte que, quase sempre, não precisa de exposição.