Sinestesia
Bater o dedinho no canto da mesa dói.
Dói lascar a unha onde há carne viva por baixo.
Bater o cotovelo, além de doer, dá choque.
Anestesia no dentista nem se fala. Canal, obturação, extração do ciso.
Ter dor de cabeça depois de um dia muito corrido, além de palpitar até erguer as veias da testa, incomoda, irrita.
Dói cortar a ponta do dedo em aparas de papel ou na tampinha de alumínio de copo d´água.
Arde morder a própria bochecha enquanto se come.
Levar uma bolada no nariz, faz surgir o desespero, porque, além de doer, sangra.
Enroscar um fiapo de toalha no piercing do nariz não tem substituto quando se trata de dor.
Ter um filho arrebenta. Ultrapassa o limiar.
Um dia muito frio, chuvoso e com vento, faz doer a alma.
Queimar a língua com chá quente é sempre esperado, mas, mesmo assim, inevitável.
Cólica em dia quente palpita.
A primeira vez é como se virassem um ser humano do avesso e cortassem ao meio com estilete.
Dói sentir um dedo dentro do olho. Mesmo que seja sem querer, a gente não escolhe.
Arrebentar afta com bicarbonato de sódio e derrubar o martelo no pé machuca.
Dor de dente dói pra cima, até chegar no couro cabeludo e pra trás, até chegar na nuca.
Bater o queixo no chão, morder a língua, cair e largar a cabeça no cimento, ralar o joelho no asfalto...
Dor de ouvido deixa louco.
Brincar de gangorra e cair em cima do braço paralisa.
Som de corneta no ouvido faz tremer o cérebro.
Torcer o pulso dói como se houvesse uma conexão com o coração.
Pisar em caco de vidro e prego enferrujado dói.
Dói prender o dedo na porta, tanto quanto torcer o tornozelo de salto alto ou um chute na canela.
Ser alvo da arminha de brinquedo do seu filho, que solta bolinhas de plástico a toda velocidade, te deixa parecendo um Chokito sabor morango.
Cortar o dedo, ao invés de cortar o bife, é uma dor contínua.
Ter o dedo pisado por um salto agulha faz perder a respiração e o grito.
Levar uma bolada naquele pedaço do seu corpo que você tanto preza, dispensa comentários, mas vai acontecer pelo menos uma vez na vida.
Quando a escova de cabelo encontra um nó na pressa, isso sim irrita e faz coçar.
Pontos cirúrgicos latejam até a loucura, como se quisessem explodir.
Ser criança e querer fazer carinho naquela taturana que queima faz soltar o choro.
Fazer xixi com assadura bota os palavrões pra correr.
Martelar o dedo, além de te fazer sentir idiota, machuca muito.
Pular de barriga na piscina deixa anestesiado.
Queimar-se com fogo, ferro de passar roupa, abelha bunduda e água quente... nossa, dói.
Bolha de queimadura solar é tão dolorida, que fica intocável.
Álcool na rachadura do calcanhar faz sentar.
Enroscar o anzol na perna deixa sem reação.
Falta de ar até o peito parecer pequeno demais, choque elétrico, tombo de patins, pedra no rim, carro passando em cima do pé, cortar o dedo na erva cidreira, cair da rede, enxaqueca, mordida de cachorro, picada de marimbondo e borrachudo, ferroada de escorpião, farpa de madeira debaixo da unha, tosse congestionada...
Dóem essas dores todas.
Mas nada dói tanto quanto ver uma família se separar e cada um seguir seu rumo em cidades diferentes.
Dói ser a primeira.
Machuca deixar a mãe pra trás e ver a luta do pai.
O que mais dói é a dor da despedida, o gosto amargo de dormir sozinha numa cidade considerada violenta.
Dóem as olheiras.
O começo machuca e o primeiro passo quase não vem, porque ter coragem é um negócio que comprime o peito.
Mas toda dor é de aprender. Nenhuma dor é desnecessária e raras vezes é permanente.
Passa e a gente esquece. E fica mais forte. Pronto pra outra.
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