Black Mirror

Não estamos num episódio de Black Mirror. Pior: estamos acordados e escolhemos apertar ‘play’ todos os dias.

A busca por dopamina barata através das telas, principalmente pela manhã, não afeta somente quem está vidrado nelas — atinge também quem está por perto. Um sujeito viciado se frustra com coisas incrivelmente banais e, se você estiver no mesmo ambiente, pode acabar sendo alvo desse descarrego emocional. Gente assim se torna insuportável sem perceber: transmite a imagem de alguém esvaziado de ideias, guiado por estímulos fúteis e prazer imediato. Vive agitado, irritado com qualquer tarefa simples que precise realizar, incapaz de lidar com o silêncio ou com a espera. E pior: espalha essa agitação para quem já vive no limite.

Não precisamos colocar nenhum dispositivo futurista para “entrar no jogo”. Qualquer pessoa, mesmo sem saber, pode estar presa a esse multiverso de dopamina barata, onde tudo é possível — menos a consciência de estar ali. Há correntes invisíveis nos segurando, e o mais assustador: fomos nós que as aceitamos. Bêbados e viciados em outras drogas podem ter o mesmo comportamento. A diferença é que o vício em redes sociais é socialmente aceito, já que a maioria depende disso para alimentar o corpo com falsas sensações de prazer e sustentar uma realidade que não existe — tal qual os bêbados, que se entorpecem na tentativa de escapar do mundo real. Multidões vivem em mundos paralelos. O bêbado fala demais e repete o que já disse. O viciado em redes sociais não se cansa de mostrar os mesmos memes, comentar sobre “celebridades” que ninguém conhece ou sobre coisas que não acrescentarão em absolutamente nada em sua trajetória ou, até mesmo, acabam fazendo propaganda de ''influencers'' e produtos sem perceber que estão fazendo isso (quem assistiu ao primeiro episódio da sétima temporada de Black Mirror vai entender a referência).

O bêbado é agressivo, irracional. Suas palavras em fúria cortam. Já o viciado apático fere no silêncio e no desprezo. Está na moda ignorar quem você feriu, como se fosse legítimo esculhambar os outros em nome do próprio prazer — afinal, tudo gira em torno do feed, não dos afetos. E se alguém se sentiu ofendido, é só pegar o smartphone e enfiar a cara na tela, como se o mundo ao redor não existisse. Engana-se quem acha que esses joguinhos egoístas são exclusivos da geração Z.

Vivemos na era mais acelerada da história. É urgente lembrar: nossas frustrações não são mais especiais que as dos outros. A empatia, apesar de tudo, ainda é uma das coisas mais bonitas que carregamos — mas anda cada vez mais rara. Hoje, é difícil até ouvir um “desculpa” de quem esbarra em você na rua. A sensibilidade foi trocada pela pressa. A escuta, por notificações. O cuidado, por curtidas. Tudo o que importa está preso na maldita tela de smartphone. Nada importa, pois você esqueceu tudo, inclusive, quem você é.

É importante notar que o uso excessivo das telas atrapalha até mesmo relações saudáveis. Quando há um parceiro ou parceira que não usa tanto as redes sociais, mas observa que seu par depende daquilo (muitas vezes, logo pela manhã), a sensação pode ser de “perda”. Como se a pessoa não estivesse ali — só o corpo, com a consciência sequestrada por alguma fase do jogo. É bem Black Mirror mesmo, bem assustador. Quer uma dica? Acorde e não vá direto para o celular. Isso afeta seu humor, rouba seu tempo e altera como você trata as pessoas. Experimente sentir a sua humanidade logo pela manhã, que tal? Não é só por você, é pelas pessoas que você acha que são o seu alvo ou seu saco de pancadas, ou mesmo, pelas pessoas que estão lutando para que você ''volte'' e saia da prisão desse jogo. Não é culpa de ninguém que as redes sociais nos apresentem um mundo perfeito, com pessoas perfeitas que estão sempre com dinheiro no bolso enquanto a maioria luta pelo mínimo. A maioria das pessoas está vivendo exatamente o contrário do que postam. Atrás de sorrisos bonitos pode haver fome.

Escrevo aqui como parte de uma reflexão. Não sou melhor nem pior que ninguém. Sou Poeta. E tudo que observo no mundo, também existe em mim. É fácil parecer bom em textos bonitinhos — difícil é lidar com a parte sombria que carregamos. A verdade é que sinto um vazio imenso quando olho para o mundo. Às vezes, o silêncio pesa tanto que entendo o motivo: o mundo não está vazio de corpos, está vazio de consciência. É nosso dever racional, principalmente quando estamos lúcidos e “limpos” de qualquer estímulo digital, refletir sobre como estamos vivendo e sobre as nossas relações sociais, principalmente, as afetivas.

E os corpos seguem alimentando o mesmo sistema que nos acorrenta às redes sociais. Aceitamos todos os “cookies” para entrar no jogo. Sem ler. Sem pensar. Alimentando bilionários que não precisam de força bruta para nos dominar — só da nossa dependência.

Por fim, a Poeta que vos fala só lamenta, mas tem esperança. Poetas e loucos sentem demais — e acabam explodindo por aí, sem saber lidar com a ausência da empatia. Para quem tem a sensibilidade correndo nas veias, a frieza humana é a antecipação da morte. O que resta é escrever.

Carolina Duvir
Enviado por Carolina Duvir em 29/04/2025
Reeditado em 29/04/2025
Código do texto: T8320901
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2025. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.