Krishnamurti contra os vendedores de ilusão

No mundo do pensamento, seja na filosofia, sociologia, economia ou política, estamos infestados de sistemas de ideais que não correspondem ao real. Nenhuma teoria ou modelo civilizacional funcionou na prática. O liberalismo político continua não dando liberdade a todos, e o econômico, tampouco. O livre-mercado nunca existiu e sim oligopólio. O comunismo, se é que existiu como na teoria, se desintegrou e não terminou como o esperado, e há quem diga que só é possível ser implementado pela violência. Esquerda e direita são termos que não dão conta de explicar a totalidade da realidade e da existência, além de só servirem para controlar e dividir a humanidade.

O problema de alguns filósofos é se separarem do mundo para analisá-lo. Dizer que a natureza humana é boa ou má é extremamente limitado. Antes de concluir qualquer coisa, é preciso cada um se investigar. O ser humano não é uma coisa nem outra e é muito complexo para ser definido.

O conflito externo é resultado do conflito interno. A sociedade sempre esteve baseada na disciplina, no esforço, na luta, seja a luta para se tornar o que não se é, seja para alimentar a competição e o conflito entre as pessoas. A filosofia e a espiritualidade, seja ocidental ou oriental, tem sido instrumento de lucro fácil para o charlatanismo, que surfa em cima de pessoas que estão insatisfeitas com suas vidas e buscam se tornar algo que não são, como serem pessoas mais felizes ou mais virtuosas, mais evoluídas espiritualmente, seja lá o que isso signifique. E esses charlatães dão o que as pessoas mais querem: coisas palatáveis, simples de entender, mas que são apenas doces ilusões. Manuais e técnicas para as pessoas acreditarem que estão se iluminando. Isso vale tanto para o estoicismo coach quanto para os gurus que te ensinam a meditar e prometem te tornar num novo Buda. Por isso Jiddu Krishnamurti é pouco ou quase nada falado, e quando é falado é mal interpretado ou propositalmente distorcido, pois o filósofo e sábio indiano não é conveniente aos vendedores de ilusão.

Nosso mundo, com todos os conflitos que criou, carrega junto com eles uma série de ideais como pretenso remédio, porém esses ideais não são a solução para nada e, pelo contrário, agravam os problemas. Digamos que queira se livrar de um desejo, um medo, qualquer conflito ou suposta característica que você não gosta em si mesmo. Então cria um ideal a ser seguido, deseja mudar, se tornar algo diferente do que é no presente, e assim deixa de ver e encarar o fato, “o que é”. É uma fuga do que é. A perseguição de um ideal cria um conflito entre “o que é” e o que “deveria ser”. Um exemplo disso é o padre ou o monge que se esforça para seguir o ideal do celibato, mas por dentro está fervendo, em sofrimento. O desejo sexual ou o sexo em si, que deveria ter seu lugar como algo natural e inerente à vida, torna-se um grande problema ou obsessão, fonte de imenso tormento. Se você é violento, cria o ideal da não-violência, que ao ser perseguido, também gera resistência. Você odeia as mazelas do capitalismo, então acha que o comunismo é a solução, mas não vê que por dentro você e o mundo continuam egoístas.

Krishnamurti diz que apenas perceber o fato e compreendê-lo, compreender o que é, sem fuga, é a verdadeira transformação. Mais profundo que mera mudança superficial, é uma mutação, uma transformação da consciência. Para ele, compreender é agir. Ao compreender, a ação correta acontece naturalmente. A verdadeira revolução é a revolução psicológica, ou revolução interior, e essa transformação radical não ocorre por meio de intermediários, só você mesmo pode fazer ao investigar e compreender a si mesmo. O ser está sempre em movimento, com pensamentos e sentimentos, por vezes contraditórios entre si, a mudar constantemente de um para outro. É necessário acompanhar todo esse movimento. Os ideais, na contramão do ser, são estáticos, querem fixar um padrão a ser seguido, cristalizar e embotar o ser. O ideal embota a mente, tornando-a rígida e engessada, e dessa forma a mente não é livre. Nas palavras de Krishnamurti, “o autoconhecimento é o começo da sabedoria, em cuja tranquilidade e silêncio encontra o imensurável”.

A palavra não é a coisa. Quando olhamos uma flor, a damos um nome, a associamos à uma memória, a uma outra ocasião em que a vimos, com o conhecimento que adquirimos sobre sua espécie, etc. Mas quando olhamos sem a limitação do pensamento e o véu da palavra, olhamos a flor em sua amplitude, para o que ela de fato é, no presente, em toda sua beleza. O mesmo vale para uma pessoa. Quando a olhamos com base numa primeira impressão, memória ou ideia pré-concebida que temos dela, não a olhamos para o que ela de fato é e sim para a imagem que dela fizemos. O pensamento está sempre no passado.

Os gurus da internet não querem que você conheça Krishnamurti, que nunca foi um guru. Ele sempre rejeitou o rótulo de guru, pois não queria ditar regras ou dizer o que as pessoas devem pensar ou fazer, mas apenas servir de auxílio e instigá-las a verem por si mesmas. Os vendedores de manuais e técnicas de meditação distorcem ou sequer falam de Krishnamurti, pois ele vai na contramão de sua venda de ilusões. A meditação não é uma prática, técnica, postura, algo que se faça com concentração e esforço, com uma determinada postura e num momento específico. Meditação não é concentração e sim atenção total e sem escolha, sem esforço. É atenção ao todo, não só num ponto, ou num fragmento, e muito menos a soma dos fragmentos. É ver e escutar verdadeiramente, seja os próprios pensamentos e sentimentos, seja o mundo ao seu redor. É também escutar o outro com a mente silenciosa, sem a interferência de seu próprio pensamento ou opiniões sobre a pessoa ou o que ela diz. Escutar e compreender de fato o que se diz, havendo relação direta e não separação entre você e o mundo. O mundo é você e você é o mundo. Não há separação entre os dois.

Meditação é ver e escutar sem a interferência, julgamento e controle do eu. É claro que existe o eu biológico/físico, que é o corpo de cada um, mas quando aqui falamos de “eu” nos referimos ao “eu” fictício, que é o ego, que também pode ser chamado de observador. O pensamento cria um eu que observa o pensamento, ou o sentimento, o fato ou coisa observada. Ao fazer isso, há a separação entre o observador e a coisa observada. Nós somos os pensamentos, os sentimentos e toda a contradição, todo o conteúdo de nossas mentes e ser. O pensamento, que somos nós, cria o pensante, o observador, na tentativa de nos sentirmos seguros diante da impermanência da vida, para lidar com nosso próprio medo e os problemas e desafios que aparecem. Tomamos distância da coisa, do fato, para fazermos algo diante dele. O observador julga o próprio pensamento, o condena ou o justifica, quer fazer algo em relação a ele, quer controlá-lo, reprimi-lo, se esforça para não pensar mais aquele pensamento indesejado. Na verdade é o pensamento tentando controlar a si próprio, como um cão que corre atrás do próprio rabo, querendo controlar o incontrolável. Mas quando abandonamos esse observador, o que fazer diante do fato (coisa observada)? Se somos essa coisa, não há o que fazer, não é? Então o conflito está resolvido. Somos tudo isso que está em movimento, não há nada estático ou permanente. O pensamento cria o eu na busca de segurança diante da impermanência. Quando abandonamos o observador, o eu, o controlador, não há mais nada a fazer, mais nada a controlar. O pensamento e o sentimento acontecem e tem seu fim, simplesmente. Não há mais nada a criar neurose. Quando percebemos que somos o medo e ficamos com ele, sem dele fugir, e apenas o percebemos, sem o observador, então o que chamamos de medo perde a força e chega ao fim. Essa é a verdadeira meditação e ela não é uma técnica ou ritual, mas ocorre a partir da compreensão de nós mesmos na vida diária.

Ninguém em sã consciência diria que não existe conflito no mundo. As guerras e conflitos bélicos são as manifestações mais explícitas do conflito. Na família e relacionamentos podemos ter conflitos e desentendimentos, alguns que podem levar até a crimes. Quando se trata de política, é muito comum agressivos embates verbais. Em todos os tipos de conflito está a violência, em todas as suas formas. A Arte de Escutar, escutar de verdade o outro, é o que a sociedade nunca soube. Séculos e séculos e nada mudou. Pois isso exigiria sabedoria e sensibilidade, o que a sociedade não tem até hoje. Esquerda e direita são animais egoístas. Um tentando calar o outro e impor sua vontade no grito e na força. As pessoas querem mudar o mundo sem antes transformarem a si mesmas.

É claro que é por causa do eu. Onde há eu há medo. Temos medo da insegurança, então buscamos a segurança, coisa que nunca existiu. De fato, não existe segurança. A busca de segurança só alimenta o medo. Se achamos que estamos seguros, temos medo de perder essa segurança e assim lutamos para preservá-la. Por isso temos tanto apego por coisas, pessoas e ideias. O apego vem do medo. Nos apegamos a nossas próprias opiniões, e podemos ficar irados ou sofrer se alguém as coloca em dúvida. Nossa autoimagem, a ideia que temos de nós mesmos, está atrelada a essas ideias. Sem elas vemos que nada somos, e temos medo de ser nada. Não queremos encarar o fato de que somos nada. Não suportamos que o eu seja destruído. Nem preciso falar de como a publicidade e a propaganda sempre se utilizaram do que se sabe sobre o ego humano para influenciar as massas. Mas a solução do problema do apego não é perseguir o ideal do desapego. Quando você tenta por meio do esforço e do pensamento se tornar desapegado você cria conflito entre o que é e o ideal, e nisso há um desperdício de energia. Basta perceber e compreender o apego; encarar, sem fuga, que você é apegado; perceber que você é o próprio apego, você é o medo.

O ser humano tem medo de perder o conhecido, morrer psicologicamente para o passado e para todas as experiências e memórias que acumulou. Tem medo de ver as coisas como elas realmente são, para além do pensamento e da palavra. Temos medo de abandonar o eu. Como disse Krishnamurti, o amor está onde o eu não está.

Samuel Perim Sena
Enviado por Samuel Perim Sena em 25/04/2025
Reeditado em 11/05/2025
Código do texto: T8318143
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