As asas anunciam: "liberdade"
Vi esta borboleta e nela os olhos conhecidos. Eu vi a mim naquela borboleta. Não, seria mais correto dizer que nela habitava uma parte de mim. E por esta familiaridade, não apenas por sua beleza sem igual, peguei-me lendo-a sobre o tronco velho abaixo da sombra.
A criatura me instigou como nunca antes. Em sua delicadeza e sonolência encontrei o familiar e sentei-me sob seus olhos brilhantes. O amarelo era parte da literatura reescrita acerca das sensações do mundo; fora o nome dado à saudade. Era isto: a borboleta era a Saudade. Mas saudade do que? Saudade de quem? De mim mesma? Não poderia ser, pois apesar de ver meu rastro na forma circular que delimitava suas asinhas, isto era apenas um fragmento, um toque, não a essência. Se assim fosse, a borboleta não seria eu mesma, mas algo que toquei com minha alma. A borboleta era um conhecido, mas não era eu propriamente.
Dizem que quando almas partem resta uma pequena fração do seu existir em buracos escondidos do mundo. Chamo de buraco tudo que existe, mas é visto como trivial, negado da verdade de si, de sua profundida inestimável e de difícil compreensão aos tolos que vagam nestas terras que se chamam Solidão. Sorrisos são ora ou outra buracos, assim como o tocar da madeira; os pés descalços acima do chão áspero e gelado do quintal na manhã outonal; o vento que açoita as altas árvores antes da tempestade como se avisasse "corram para casa" também é um buraco, afinal. E todas estas coisas são triviais aos olhos daqueles que não desejam ver; sua profundidade é escondida pelo senso de monotonia. A borboleta era isto, monótona e bela, mas não apenas isto.
Era inegável que senti carinho pela criatura; havia uma alma, talvez um resto de alma, ali; as sobras mundanas de um antepassado ao qual dei e tirei o nome. Então entendi, a borboleta também era a representação da brevidade e liberdade, estas que entreguei àquele que negou-se delas antes. E vendo-a voar, alta, calma e leve senti-me feliz. Não estaria eu livre, contudo ela permitiu-me sentir um pouco do que seria este sentimento gentil. Presa. Receio dizer que estou entre as grades de mim mesma e odeio cada segundo em que preciso esquecer quem sou para afirmar este maldito mundo vazio, onde o singular se retrai para dar lugar ao mórbido sentimento de ausência. Nas asas da borboleta, no entanto, estive em êxtase. Ela apenas se foi, como deve ser, assim como todos que amamos fazem, mas também como eles deixou-me o melhor, uma breve visão do que posso ser. Este mundo secreto está se perdendo? Eles estão esquecendo? Estão e, inconscientemente, querem que todos façam o mesmo somente por odiarem a ideia de estarem errados, de serem eles o mortos.
Se pudesse já teria seguido meus preciosos mundos perdidos, rumo ao desconhecido do real e familiar aos sonhos, estas realidades que tomam meu coração em segredo e tornam-me tão frágil aos toques da vida. Isto seria minha liberdade, distante o bastante do rosto que recrimina e mata. Por todos os céus! Aquele pequeno ser não viveu menos que eu. Ele nasceu depois, morreu antes, mas viveu mais. Sozinho, sem amarras, sem ideologias, sem noções. Ele veio e se foi sendo o mais admirável dos mundos perdidos: fora ele, fora tudo o que tinha a entregar ao nada, mas fora indubitavelmente ele. Eu quero ser eu mesma também, assim como aquela borboleta mostrou naqueles significativos segundos. Quero tornar o mundo mais próximo da sensação de uma casa, mas como fazer isto?
Sinto-me cada vez mais angustiada, incompatível. Quero que vejam em meus olhos, que saibam que este mundo não é meu, mas que deixem-me viver nele sendo como sou, inapta. Então poderei destruir as muralhas e mostrar, sem me apressar ou me sufocar, que também mereço estar aqui como qualquer folha, ave, borboleta e humano.