A aposta de Pascal (1)
O filósofo americano William James (1842-1910), em seu texto intitulado "A Vontade de Crer" (2001) (2), começa sua abordagem pragmática sobre a aquisição de crenças retomando o célebre argumento sobre uma "aposta" proposto pelo filósofo francês Blaise Pascal (1623-1662) em seu livro "Pensamentos" (1973) (3). Nesse argumento (Pascal, 1973, p. 87) são apresentados os prós e contras de se crer na existência de Deus, sobre a qual uma aposta entre um crente e um cético (4) resultaria no seguinte: ao se considerar as perdas e ganhos de se acreditar que Deus existe, o crente tende a levar vantagem sobre o cético porque, na hipótese de que sua crença seja verdadeira (a de que Deus existe) ele ganhará a beatitude eterna que usufruirá após sua morte e, na hipótese de que sua crença seja falsa, o crente nada perderá (talvez uma perda finita, um risco razoável a correr diante da possibilidade de um ganho infinito). Assim, Pascal considera que é mais vantajoso apostar que Deus existe, mesmo que sua existência não possa ser comprovada.
A partir desse argumento, James expressa a ideia de que, diante de questões controversas, vale a pena adotar a solução que traga consequências práticas benéficas para o agente. Essa reflexão identifica-se com aquela questão com que se defronta o cético quando percebe o bem-estar que as práticas e as crenças religiosas trazem para o crente (não somente no que tange ao consolo às suas angústias existenciais, mas também no que tange aos seus efeitos fisiológicos): se o crente é de fato feliz com suas crenças em coisas falsas, seria sensato convencê-lo da falsidade de suas crenças? Caberia investigar na questão se a expressão "de fato feliz" se confirma ou se não estamos condescendentemente encarando sua felicidade como a mesma felicidade que encaramos na criança que acredita em Papai Noel, e que apenas aceitamos porque suas ideias fantasiosas são próprias de sua mente ainda em formação (e, nesse caso, estaríamos encarando os crentes apenas como crianças crescidas?).
Mas o argumento de Pascal é inconsistente por algumas brechas vulneráveis através das quais pode-se contestá-lo. Vamos a uma delas, na qual a consideração pela felicidade em vida ou terrena seja mais importante e racional, já que há uma dúvida sobre o resultado da aposta. Em seu livro, Pascal (1973, p. 90) descreve o cético em feições nada edificantes: “Aonde se podem ir buscar tais sentimentos? Que motivo de alegria se pode encontrar em não esperar senão misérias sem remédio? Que motivo de vaidade existe em se ver na obscuridade impenetrável, e como pode acontecer que esse raciocínio passe pela cabeça de um homem razoável?”. Pascal aqui está pensando, em relação à aposta, na possibilidade de o cético estar errado ao optar por descrer na beatitude eterna. Mas, "ad contra", e se o cético estiver certo na aposta (hipótese em que não existe Deus nem nenhuma beatitude infinita) e estiver pensando apenas na única beatitude possível e tangível, a finita que pode desfrutar aqui mesmo em vida?
Uma irmã de Pascal, em uma carta disponível na edição do livro de Pascal referenciado, descreve em detalhes impressionantes a personalidade do irmão, tomada por uma devoção quase fanática ao cristianismo raiz. De saúde frágil e comumente adoentado, Pascal sofria de dores de cabeça atrozes, mas quase deleitava-se por seus sofrimentos físicos, porque acreditava que um verdadeiro cristão devia, como o fez Jesus Cristo, renunciar a quaisquer prazeres (Pascal cuidava-se de rechaçá-los sempre que sentia algum, por menor que fosse, e chegava a comprometer suas finanças e se endividar para fazer caridade com os pobres). Ao sofrer fisicamente e renunciar aos prazeres, estaria sendo um verdadeiro cristão, candidato às recompensas eternas. Porém, contrariando a sua conclusão falaciosa sobre a aposta, segundo a qual “Teria muito mais medo de me enganar, e vir a achar que a religião cristã é verdadeira, do que de me enganar por julgá-la verdadeira” (Pascal, 1973, p. 103), o cético, diante da vida física sofrida do filósofo em vida, se ganhasse a aposta por Deus não existir, teria na verdade um ganho sobre Pascal, por ele, como cético, poder viver uma vida terrena plena e prazerosa, sem os sofrimentos do filósofo em seus esforços insanos de se provar um cristão verdadeiro. Logo, o cético, nesse caso de ter ganho a aposta (muito mais provável pela opção mais razoável do que a outra fantasiosa) e que sofreu aquela tão dura descrição que Pascal fez dele, pode imputar essa mesma descrição justamente ao próprio Pascal, justificada nesse caso pela miserável vida terrena de dores e sacrifícios que teve.
(1) Excerto do livro "Uma Investigação sobre as Motivações para as Crenças Religiosas" do autor, em fase de publicação.
(2) JAMES, W. "A Vontade de Crer". Tradução de Cecília Camargo Bartalotti. São Paulo: Edições Loyola, 2001. Disponível em http://leandromarshall.files.wordpress. com/2012/05/william-james-a-vontade-de-crer.pdf (consultado em 01/10/2013).
(3) PASCAL, B. "Pensamentos". Os Pensadores Volume XVI. Tradução de Sérgio Milliet. São Paulo: Abril S.A. Cultural e Industrial, 1973.
(4) Lembremos que um cético, no conceito histórico consagrado na filosofia, não se confunde com o ateu, que é um indivíduo convicto da não existência de Deus. O cético, diante de uma dúvida insolúvel entre duas hipóteses possíveis (no caso em questão, a de que “Deus existe” do crente e a de que “Deus não existe” do ateu), prefere manter a suspensão de seu juízo, decidindo-se por não adotar nenhuma das duas.