Nietzsche segundo Filósofo Nilo Deyson

“Nietzsche e a ‘divinização do diabo’: Um projeto de “superação da moral”.

Neste artigo, tomo como ponto de partida a ideia de que o procedimento crítico da genealogia acaba por atuar como uma estratégia pragmática para a dissolução das mais básicas estruturas de compreensibilidade da cultura Ocidental-cristã. Objetiva-se aqui demonstrar que grande parte da crítica de Nietzsche ao processo de moralização dos impulsos se confirma como uma verdadeira transformação da compreensibilidade. Neste contexto, ainda que a genealogia de Nietzsche possa ser compreendida como apenas mais uma entre tantas interpretações, seu diferencial está em sua capacidade de deslocar estruturas de pensamento e ser capaz de, por exemplo, compreender que o valor do mundo está em nossa interpretação […], que cada elevação do homem traz consigo a superação de interpretações mais estreitas, que todo o fortalecimento alcançado e todo alargamento de potência abre novas perspectivas e faz crer em novos horizontes — isto percorre meus escritos. O mundo, que em algo nos importa, é falso, ou seja, não é nenhum fato, mas uma composição (Ausdichtung) e arredondamento (Rundung) sobre uma magra soma de observações. O mundo é ‘em fluxo’, como algo que vem a ser, como uma falsidade que sempre novamente se desloca, que jamais se aproxima da verdade — pois não existe nenhuma verdade (FP 1885 2 [108]).

“É esse constante descolamento de perspectivas aquilo que abre um novo horizonte de possibilidades ao homem, seja no diferente trato de seus afetos ou em seus potenciais de futuro. Não é apenas uma história da moral ou mesmo a identificação dos valores de décadence aquilo que aparece como foco da genealogia de Nietzsche, pois, como vivência e experimento, ela deve não apenas diagnosticar, mas no exercício dessa tarefa, também cultivar a grandeza para atuar como inspiração e promessa de ‘mais futuro’” (GM II 25).

Com esse deslocamento de perspectivas em mente utilizo um dos planos de escrita de Nietzsche como guia discursivo para debater essas novas possibilidades e superações. Especificamente, seu projeto de:

“Superação da moral.

[Pois,] até aqui, o homem se manteve miseravelmente, na medida em que tratou de maneira pérfida e caluniosa os impulsos que lhe eram mais perigosos, ao mesmo tempo em que bajulou de maneira servil os impulsos que o conservavam.

Conquista de novos poderes e países:

a) a vontade de não verdade

b) a vontade de crueldade

c) a vontade de volúpia

d) a vontade de poder” [VCS] (FP 1885 1[84]).

Seguindo este roteiro, são dispostas a seguir quatro secções que, no sentido dessa busca por “novos poderes”, vão apresentar sua genealogia como uma estratégia de “superação da moral”, ou melhor, como um reflexo da corrupção daqueles afetos perigosos e vilipendiados pela moral dominante. Trata-se de um verdadeiro exercício de espiritualização e vivência daquela antiga tese que afirma que “já por tempo demais o homem considerou suas propensões naturais com ‘olhar ruim’, de tal modo que elas nele se irmanaram com a ‘má consciência’. Uma tentativa inversa é em si possível — mas quem é forte o bastante para isso?” (GC 24).

Mirando nessa “tentativa inversa”, levo ao debate no item 1, “A vontade de não verdade: da verdade à (grande) saúde”, a ideia de que o processo de desenvolvimento da investigação genealógica é o resultado de uma crítica histórica que, levada às suas últimas consequências, encontra na mudança da verdade para a saúde uma das principais ferramentas de sua crítica. Na sequência, em “A Vontade de Crueldade: Nietzsche e sua ‘máquina de guerra’”, apresento um debate acerca dos tortuosos e incertos limites entre a retórica bélica do texto de Nietzsche e sua demanda pela espiritualização desses temas. A meu ver, o processo de distanciamento moral de sua crítica passa inevitavelmente pela capacidade do humano de lidar — de boa consciência — com afetos imorais como a crueldade e a violência. No item 3, “A vontade de volúpia: a sensualidade vs o pudor moral”, identifico outro ponto obrigatório do distanciamento estratégico que prescreve um pathos de distância a toda a perspectiva do pudor moral e da mortificação do corpo que foi tornada célebre na perspectiva sacerdotal-cristã. Por fim, em “‘A vontade de poder’ como cultivo da grandeza”, defendo a hipótese de que uma parte integral de seu projeto de distanciamento da moral doente pode ser identificado no debate relacionado ao cultivo da grandeza, a saber, na identificação e estímulo de uma economia pulsional voltada para o grande, para um tipo “mais digno de vida, mais certo de futuro” (AC 3).

“A vontade de não verdade”: da verdade à (grande) saúde:

Ao seguir o diagnóstico da genealogia de Nietzsche, nota-se que a pergunta pela verdade de um determinado discurso vai gradualmente sendo substituída por uma “vontade de saúde”. Essa mudança de perspectivas é um dos pontos centrais de sua “superação da moral” (FP 1885 1[84]), um momento de viragem em sua crítica filosófica que implica não apenas na identificação de problemas relacionados aos valores cultivados pela modernidade decadente, mas também no reconhecimento de toda uma nova forma compreensibilidade.

Na “verdade”, a base dessa transfiguração da compreensibilidade já foi demonstrada no aforismo 12 da terceira dissertação de “Para genealogia da moral”. Neste texto, ao tratar de seu “conhecer perspectivo”, Nietzsche nos revela, por meio do exemplo da corrupção sacerdotal, como o teor afetivo e volitivo de uma “vontade de verdade” deu origem àquela “antiga, perigosa fábula conceitual que estabelece um ‘puro sujeito do conhecimento, isento de vontade, alheio à dor e ao tempo’” (GM III 12). Em sua visão, essa obsessiva busca pela verdade guiada pela Aufklärung consolidou-se de tal forma em nossa cultura que a probidade intelectual tem agora de denunciar toda e qualquer forma de mentira. Ela o faz, sem perceber, contudo, que a crença no valor incondicional da verdade é, ao olhar do genealogista, apenas mais uma forma de mentira na qual subjaz o núcleo espiritual da modernidade: a crença no incondicionado.

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Na perspectiva genealógica, não é por meio de uma análise da verdade de um discurso que se sonda uma filosofia, mas sim indagando por suas motivações fisiopsicológicas e afetivas. Somente assim seria possível aproximar a vista daquelas obscuras motivações dos filósofos, afinal a origem de uma filosofia é sempre revelada pelos “sintomas do corpo” (Prólogo 2). Foi seguindo o rastro desses sintomas que Nietzsche pôde identificar como a grande maioria da história da filosofia não foi outra coisa senão uma história de homens doentes; homens que construíram seus “majestosos edifícios morais” (Prólogo 3) sobre a debilidade dos afetos de seus corpos decadentes. Como menciona em “Gaia Ciência”:

O inconsciente disfarce de necessidades fisiológicas sob o manto da objetividade, da ideia, da pura espiritualidade, vai tão longe que assusta — e frequentemente me perguntei se até hoje a filosofia, de modo geral, não teria sido apenas uma interpretação do corpo e uma má-compreensão do corpo. Por trás dos supremos juízos de valor que até hoje guiaram a história do pensamento se escondem más compreensões da constituição física, seja de indivíduos, seja de classes e de raças inteiras. Podemos ver todas as ousadas insânias da metafísica, em particular suas respostas à questão do valor da existência, antes de tudo como sintomas de determinados corpos (…) (Prólogo 2).

Como demonstrou Wotling, por meio de sua hipótese da vontade de poder, a genealogia não é somente capaz de “decifrar filologicamente os valores, mas ela também funda uma teoria do valor dos valores, isto é, do valor das interpretações” (2013). Essa “teoria do valor dos valores” não pode se restringir às antigas fronteiras do conhecimento baseadas na busca da verdade, seu “trabalho clínico” exige o emprego de novas ferramentas conceituais, mais complexas e fluidas, neste caso, aquelas que, como expressão do corpo, podem ser identificadas como promotoras (saúde) ou depressoras (doença) da vida mesma:

“Ora, o privilégio acordado por Nietzsche à linguagem metafórica fisiológica e médica não reside apenas que ela faz aparecer, na origem de todo fenômeno de cultura, a atividade interpretativa da vontade de potência, mas reside ainda mais no fato de que ela permite revelar, atrás de uma dada cultura, um certo estado do corpo […]” (WOTLING, 2013).

Dessa avaliação sintomatológica da modernidade vê-se brotar uma nova forma de juízo e conduta filosófica, passando da verdade ao estatuto de valor, ou seja, da verdade à saúde. O que não quer dizer, contudo, que a noção de verdade não tenha significado no decorrer do diagnóstico do genealogista, pois ela é tão importante quanto o estatuto da probidade e honestidade intelectual é para qualquer investigador, o que ela não é definitivamente é a condição primeira de sua investigação. O que movimenta o genealogista não é uma “vontade de verdade”, mas a condição que é própria de sua capacidade de avaliar estatutos de verdade à ótica das vontades de poder, isto é, sua capacidade de avaliar disposições como afirmadoras ou depressoras da vida. Nesse contexto, a tarefa do historiador da moral deixa de ser apenas um diagnóstico dos problemas gerados pela perspectiva socrático-cristã e passa a figurar como uma verdadeira arte de cura para uma vivência doentia. Essa é a nova tarefa do genealogista e do “médico filosófico” (Prólogo 2), não a verdade, mas ser “alguém que persiga o problema da saúde geral de um povo, uma época, de uma raça, da humanidade”. Esse novo investigador deve ter a coragem de colocar os problemas reais que afligem a história do humano e compreender que a questão fundamental da filosofia até o momento “não foi absolutamente a ‘verdade’, mas algo diferente, como saúde, futuro, poder, crescimento, vida…” (Prólogo 2). É nesse contexto que o filósofo pode afirmar ser a sua suspeita uma “língua nova”, “estrangeira” (BM 4), um novo proceder que é capaz de colocar não a verdade, as origens, ou até mesmo a conservação da vida como meta, mas acima de tudo, sua expansão. “Partindo de uma representação da vida (que não é um querer-se-conservar, mas um querer-crescer) dei um panorama geral sobre os instintos fundamentais de nosso movimento político, intelectual e social na Europa” (FP 1885 2[179]). Como afirma o filósofo, a falsidade de uma perspectiva ou discurso não é o objeto da questão, o problema são as metas, os objetivos que são cultivados em uma determinada cosmovisão:

A falsidade de um juízo ainda não é para nós nenhuma objeção contra esse juízo: é nisso, talvez, que nossa língua nova soa mais estrangeira. A pergunta é até que ponto é propiciador da vida, conservador da vida, conservador da espécie, talvez mesmo aprimorador da espécie; e estamos inclinados por princípio a afirmar que os mais falsos juízos (entre os quais estão os juízos sintéticos a priori) são para nós os mais indispensáveis, que sem um deixar-valer as ficções lógicas, sem um medir a efetividade pelo mundo puramente inventado do incondicionado, do igual-a-si-mesmo, sem uma constante falsificação do mundo pelo número, o homem não poderia viver — que renunciar a falsos juízos seria uma renúncia a viver, uma negação da vida. Admitir a inverdade como condição da vida: isto significa, sem dúvida, opor resistência, de uma maneira perigosa, aos sentimentos de valor habituais; e uma filosofia que se atreve a fazê-lo se coloca, simplesmente com isso, para além de bem e mal (BM 4).

Esse processo de subversão de um conhecimento baseado na ideia de verdade pode ser observado na crítica feita em “O crepúsculo dos ídolos”, neste caso, por meio da relação entre aquilo que Nietzsche identifica como uma “moral sadia” (Gesunde Moral) e uma “moral antinatural” (Widernatürliche Moral):

Imagem disponibilizada pelo autor Nilo Deyson.

“Eu formalizo um princípio. Todo naturalismo na moral, isto é, toda moral sadia é dominada por um instinto da vida, — qualquer mandamento da vida é preenchido com um determinado cânon de “deve” ou “não deve”, qualquer entrave e hostilidade é com isso posto de lado. Ao contrário, a moral antinatural, isto é, quase toda moral que até agora foi ensinada, venerada e pregada, volta-se diretamente contra os instintos da vida, — ela é uma, ora secreta, ora ruidosa e descarada condenação desses instintos” (“A moral como antinatureza”).

Ora, seu novo referencial crítico é justamente uma hierarquia de saúde. São os “instintos da vida” e a inclinação de cada moral entre uma perspectiva idealizada, compassiva e castradora [Castratismus] (“A moral como antinatureza”), o que classifica a oposição entre dois modos de valorar distintos. De um lado, a perspectiva instintiva ligada à “saúde”, e de outro, a leitura idealista, associada à “antinatureza”. Essa é a mesma ideia que volta a aparecer na seção de “O crepúsculo dos ídolos”, intitulada “O problema de Sócrates”:

“A mais crua luz do dia, a racionalidade a todo custo, a vida clara, fria, cautelosa, consciente, sem instinto, em resistência aos instintos, foi ela mesma apenas uma doença, uma outra doença — e de modo algum um caminho de volta à “virtude”, à “saúde”, à felicidade… Ter de combater os instintos — eis a fórmula da décadence: enquanto a vida ascende, felicidade é igual a instinto” (“O problema de Sócrates”).

Na perspectiva idealista da Versuch, “a vida não se basta a si mesma, é preciso encontrar sua verdade para só então, por esta, ela valer a pena”, essa vida — que em larga escala é ainda a perspectiva moderna — é uma vida idealizada, uma forma de antinatureza à vida mesma, pois não se toma a vida como medida e valor, mas sim uma “ideia” de vida. Nesta antinatureza inconfessa, o “ideal” vale mais do que a própria vida. Esse ideal seja na forma de uma weltanschauung, uma religião, uma verdade, ou mesmo uma moral, não pode escapar daquilo que o constitui: uma vontade de poder que quer falsificar sua interpretação como texto, que quer impor uma visão como efetividade. Assim, negam-se os instintos e as vezes até os depreciam, uma vez que a verdade só pode caminhar junto de uma “ideia de vida” e não da vida mesma. No sentido dessa argumentação, compreendemos junto de André Martins que a investigação genealógica, “em vez de buscar uma verdade do já dado, a reconstrução de fatos, busca interpretar afetos genealogicamente presentes na origem de modos de vida e formas da cultura” (MARTINS, 2004). Ou seja, trata-se de uma interpretação que, à revelia da verdade, instrumentaliza a ideia de saúde como um contraconceito da verdade, seu mais direto ultrapassamento.

Em resumo, a saúde ultrapassa o ponto de vista da verdade, e mais além: permite ao genealogista tomar em suas mãos o processo de hierarquia que perpassa tudo que existe no tempo. A crítica transforma-se assim em uma vivência de contínua e profunda reavaliação daquela “vontade de sistema” expressa por meio de uma doutrina em O Crepúsculo dos Ídolos (“Sentenças e setas”). Daquela perspectiva que figura como a base do pensamento ocidental e que, em grande medida, ainda está calcada no “princípio” metafísico de que “Deus é a verdade, de que a verdade é divina…” (GC 244). Como observou Oswaldo Giacóia:

“Com ‘Para além do bem e do mal’, institui-se um projeto de reconstituição histórico-crítica dos supremos valores da cultura ocidental, cujo objetivo é levar a cabo, numa dimensão de absoluta radicalidade, a “química dos conceitos e sentimentos” que o aforisma inaugural de “Humano, demasiado humano” estabelecia como condição necessária de toda verdadeira filosofia histórica; trata-se, portanto, de mostrar, com abandono de toda e qualquer crença otimista num progresso do espírito, tendente à realização de um reino de verdade e liberdade, como as mais belas e sublimes formações da cultura ocidental (isto é, as supremas referências de valor da moralidade) plantam suas raízes no pantanal obscuro e movediço dos impulsos ardentes do “animal homem”; trata-se de permitir o acesso às sufocantes e sangrentas câmaras de tortura onde são fabricados os supremos ideais” (GIACÓIA-JÚNIOR, 2014).

“É preciso ressaltar, contudo, que o ato de empregar noções como saúde, expansão e fortalecimento como critério de uma nova forma de interpretação da verdade não deve aqui ser entendido como uma tentativa de substituir uma norma pela outra. Ao tomar a saúde como objeto de suas preocupações, o genealogista não busca propriamente estabelecer um juízo de predileção sobre determinado interesse ou interpretação, muito pelo contrário: seu objetivo é avaliar inclinações, isto é, a disposição ou indisposição para o fortalecimento, engrandecimento, e aumento da potência de vida, ou seja, tudo aquilo que, como apontou o filósofo, pode ser visto como naturalmente bom e saudável: “o aumento do sentimento de poder” representação da ‘própria felicidade em si, aquilo que é bom’” (AC 3).

Essa é a “lógica” de sua subversão, a compreensão de que, se por probidade intelectual não podemos deixar de beber na fonte da verdade, por outro lado é a saúde e o impulso à vida aquilo que deve guiar o genealogista. Como indicou Paul van Tongeren:

“A ‘paixão do conhecimento’ (FW 3 107 e 123), por um lado, representa, na verdade, uma qualidade moral, por outro lado, porém, uma ameaça à própria vida: quem pergunta passionalmente e busca conhecimento combaterá toda mentira, e também aquelas que são mais agradáveis e até mesmo mais necessárias à vida. O pensador se converte em um campo de batalhas onde o impulso à vida e o impulso ao conhecimento combatem entre si” (2010).

Foi essa subversão da compreensibilidade que permitiu ao genealogista vislumbrar que, no processo dinâmico das “vontades de poder”, não pode haver fatos, mas apenas interpretações. Trata-se de uma forma de pensar que, longe de conduzir o genealogista a uma aporia, o encaminha à compreensão de sua condição como “médico filosófico” (Prólogo 2), de sua imperiosa necessidade de diagnosticar tendo em mente não apenas a verdade ou o diagnóstico do problema, mas seu estatuto para o fortalecimento ou enfraquecimento da vida. Ao genealogista cabe, portanto, a tarefa da hierarquia, de diagnosticar apropriadamente aquelas forças que contribuem para a expansão da vida ou para sua depressão, conservação, manutenção e apequenamento etc. Como resumiu Oswaldo Giacóia, o diagnóstico genealógico de Nietzsche pode ser descrito nesse contexto como uma crítica terapêutica indispensável à transvaloração dos valores de que fala sua filosofia tardia:

“A história da cultura se transforma numa sucessão de interpretações, a realidade se apresenta como interpretação, a sintomatologia como interpretação da interpretação ou, paradoxalmente, como interpretação à qual nenhum texto definitivo subjaz. A genealogia da moral transforma a história da cultura ocidental numa mascarada das vontades de poder. […] Segundo essa perspectiva, as transformações históricas por que passa a cultura ocidental adquirem a significação de momentos do processo de desenvolvimento do nihilismo, cuja inteligência e reflexão conduz à urgência de uma crítica terapêutica, preparatória de transvaloração dos valores da decadência. Boa parte dessa terapêutica é constituída pela derradeira filosofia de Nietzsche” (GIACÓIA-JÚNIOR, 2014).

Imagem disponibilizada pelo autor Nilo Deyson.

No roteiro dessa terapêutica é possível traçar novas rotas e evitar os caminhos habituais da racionalidade e do formalismo do conhecimento lógico-acadêmico, como é o caso da maioria das vivências e experiências do corpo. Esse é o sentido da nova compreensibilidade de que fala o filósofo. Ultrapassar as exigências da racionalidade, do academicismo, da ciência:”Nós outros, nós imoralistas […] abrimos nosso coração para toda espécie de compreensão” (CI Moral como antinatureza 6). Dentre as novas formas de compreensão está o conhecimento pelo sofrimento, a busca pela novidade do experimento, do “mar aberto” (GC 382), e até mesmo a espiritualização da exploração, pois agora, o médico pode, “graças ao seu sofrimento, saber mais do que os mais inteligentes e mais sábios podem saber, ter estado ‘em casa’ e sido conhecido em muitos mundos distantes e horríveis, dos quais ‘vocês nada sabem!’” (BM 270).

“‘A vontade de crueldade’: Nietzsche e sua ‘máquina de guerra’”

Para Reinhard Maurer, a retórica bélica e combativa do texto de Nietzsche deve ser sempre encarada como um “pensar compensatório” (1995). Com isso, Maurer quer apontar para o fato de que o frequente exagero e agressividade da retórica nietzschiana cumpre uma função dentro de seu texto. Ela funciona como o do peso de uma balança que busca compensar a habitual distorção de uma perspectiva unilateral legada pela moral. Em sua escrita, Nietzsche necessitaria equilibrar aquela desproporção moral “por meio da ênfase no contrapólo aristocrático reprimido” (MAURER, 1995). Assim, o tom irruptivo do texto nietzschiano não deveria ser tomado de forma literal, mas apenas como mais uma estratégia de sua “máquina de guerra”, uma forma de compensar a supervalorização de certos atributos morais em detrimento de outros.

Evidentemente, não é possível discordar de Maurer no que diz respeito à necessidade de cuidados na leitura do texto de Nietzsche. Verdadeiros “laços e redes para pássaros incautos” (HH Prefácio 1), seus livros demandam uma leitura cuidadosa, ou como aponta o próprio Nietzsche, “um leitor como eu o mereço, que me leia como os bons filólogos de outrora liam o seu Horácio” (EH Por que escrevo livros tão bons 5). No entanto, se por um lado é verdadeira a necessidade de cuidados para a leitura de metáforas e conceitos nietzschianos — como vontade de poder, crueldade, judeu, escravidão; por outro lado — também é vero que para ser “a má consciência de seu tempo” é indispensável o exercício de um certo distanciamento daquele discurso que pretende estabelecer um determinado conjunto de virtudes como intocáveis, como é o caso da perspectiva ocidental-cristã da: verdade, igualdade, justiça, e compaixão. Assim, se é indispensável saber separar as hipérboles performativas do texto de Nietzsche, também é fundamental compreender que o distanciamento moral figura como uma das estratégias centrais da arte de cura nietzschiana, e que, por vezes, o imoralismo confesso de seus escritos não é um instrumento linguístico, mas a experimentação de uma nova perspectiva. Isto é, de uma nova leitura que, por ser demasiado humana — leia-se imoral — é acometida de toda a sorte de suavizações, distorções e releituras interpostas por seus intérpretes mais apegados aos valores que os traduzem como homens modernos.

Como destacou Onfray, levando em consideração o perigo que consiste em uma assinatura caricatural do texto de Nietzsche, a melhor forma de servir ao autor de Zaratustra seria “recusando as habituais boutades de comentadores superficiais”, distanciando-se o máximo o possível da tentação de impregnar o texto do filósofo com as heterodoxias e vícios que carregamos. Afinal, a historiografia confirma que: “Sob sua escrita, encontra-se tudo e o contrário de tudo, que existem na obra completa citações que podem justificar tanto uma posição quanto sua negação […] postos em relação como uma colcha de retalhos que permite aos hábeis costureiros e aos falsários — penso em um jesuíta de hábito… — transformar Nietzsche mais ou menos em cristão ou qualquer bobagem graciosa!” (ONFRAY, 1999).

Essa preocupação não é injustificada, pois desde as primeiras deformações de sua irmã, Nietzsche já foi transfigurado em antissemita, defensor da brutalidade e do irracionalismo “animalitas” (HEIDEGGER, 2007), foi associado ao fascismo, lido como um “filósofo social do capitalismo” (MEHRING, 1891), um defensor de uma espécie de “socialismo nietzschiano” de (ANCHHEIM, 1992), “constitucionalismo liberal” (EGYED, 2008), e houve até mesmo autores que vislumbram no texto de Nietzsche uma espécie de “cristianismo não religioso” (ROLLAND, 1998), isto é, “benevolente” (REGINSTER, 2006). Essas deformidades pintam, como apontou Maurer, um “soft-Nietzsche” em que sua filosofia se torna “quase sinônimo de amor e justiça” (MAURER, 1995).

O próprio Onfray, apesar de sua crítica, também apresenta algumas tentativas de reformar moralmente o texto de Nietzsche. Pois se por um lado ele afirma não politizar sua investigação, por outro, ele busca forjar uma leitura do texto nietzschiano que ofereça suporte às suas próprias predileções político-filosóficas, neste caso, fabricando uma dimensão feminista e hedonista na filosofia nietzschiana:

“Meu Nietzsche é frágil, ama as mulheres, mas não sabe como dizer isso a elas, então primeiro se protege, depois se expõe à misoginia; ele pratica a doçura, a polidez, a discrição na sua vida — ‘[…] Se ele não é hedonista’ — conheço bem, evidentemente, os textos em que ele associa essa opção filosófica à decadência e ao niilismo –, ao menos, ele retoma por sua conta a tradição de seus queridos gregos, todos eudaimonistas: nenhum, de fato, evita a questão do soberano bem. Nietzsche também não. Como viver para ser… digamos, felizes? Ou melhor: o menos infeliz possível — outra forma de definir o hedonismo…” (ONFRAY, Prefácio, 4).

A despeito desse vício sub-reptício de impingir interesses no texto de Nietzsche, o que esses autores não conseguem perceber é que esse processo de acidez da crítica nietzschiana parece ser indispensável se tivermos em vista a história das relações de poder e o aparelhamento do horizonte de possibilidades do homem ocidental. Não é sem razão que Nietzsche chama sua filosofia de “sintomatologia” (CI Os “melhoradores” da humanidade) ao se perguntar pelas metas e pelo significado de uma determinada interpretação da vida. Seu diagnóstico, assim, aponta não apenas para a história do problema, mas busca apresentar formas de romper com sua dominação. Não recuperar essa moral, mas lhe aplicar uma “alfinetada para que estoure” (AC 7). Esse é, como indicou Paschoal ao falar de Stegmaier:

“[O] motivo pelo qual ele precisaria desestabilizar as antigas crenças e viabilizar o aparecimento de outras possibilidades, de conferir uma nova orientação no campo da moral. Nesse sentido, para Stegmaier, numa tese que acompanhamos em grande parte, “a crítica é […] apenas meio e pressuposto para a [sua] filosofia, inclusive em sua Genealogia da moral” (p. 3), do mesmo modo como a história da emergência da moral, levada a efeito por Nietzsche, é apenas um meio para “deslegitimar” (p. 55) a moral dominante. O que confere sustentação à nossa hipótese da genealogia como uma ação e do genealogista como partícipe no campo descrito por ele” (2014).

Essa é a questão da “margem de manobra” [Spielräume] que se tornou célebre no texto de Stegmaier, a saber, “um conceito ou imagem para regulamentação da validade de regras. […] um espaço no qual alguém ou alguma coisa pode se comportar de acordo com regras de atuação próprias […]” (STEGMAIER, 2013). A própria moral, como expressão de uma vontade de poder, é o agente dessa delimitação, é ela que impõe limites aos afetos, ao pensamento, à própria vida. Todavia, mesmo após dado início ao processo de “grande liberação” (HH Prólogo 3) desses limites, e com a possibilidade de ampliação de perspectivas, esse novo “deslegitimar”, como vimos, apresenta um problema: a sensibilidade moderna. E esse é, a nosso ver, um ponto que tem que ser colocado em questão

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Um dos casos mais exemplares desse dilema entre imoralismo e a sensibilidade moderna está no aforismo 259 do livro “Além de bem e mal”. Neste texto, Nietzsche parece responder a uma questão que ele próprio levanta alguns anos antes em uma anotação do outono de 1885, a saber, o “problema: [de] quão fundo desce à essência das coisas a vontade voltada à bondade? Vê-se por toda a parte, em plantas e em animais, o contrário disso: indiferença ou dureza ou crueldade. […]” (FP 1885 4). Essa breve anotação, no contexto do aforismo 259 de BM, pode ser compreendida como uma peça central de seu deslocamento moral, seu imoralismo. Trata-se de um verdadeiro exemplo da incapacidade do homem moderno de lidar com aquilo que, à ótica da sensibilidade cristã, é compreendido como negativo, feio, imoral. Ou seja, o oposto de tudo aquilo que pode ser compreendido como “o fato primordial da história” [das Ur-Faktum aller Geschichte], aquela história esteticamente desagradável das relações de poder no tempo. Como diz o filósofo alemão:

“Abster-se de ofensa, violência, exploração mútua, equiparar sua vontade à do outro: num certo sentido tosco isso pode tornar-se um bom costume entre indivíduos, quando houver condições para isso (a saber, sua efetiva semelhança em quantidades de força e medidas de valor, e o fato de pertencerem a um corpo). Mas tão logo se quisesse levar adiante esse princípio, tomando-o possivelmente como princípio básico da sociedade, ele prontamente se revelaria como aquilo que é: vontade de negação da vida, princípio de dissolução e decadência. Aqui devemos pensar radicalmente até o fundo, e guardarmo-nos de toda fraqueza sentimental: a vida mesma é essencialmente apropriação, ofensa, sujeição do que é estranho e mais fraco, opressão, dureza, imposição de formas próprias, incorporação e, no mínimo e mais comedido, exploração — mas por que empregar sempre essas palavras, que há muito estão marcadas de uma intenção difamadora? Também esse corpo no qual, conforme supomos acima, os indivíduos se tratam como iguais — isso ocorre em toda aristocracia sã —, deve, se for um corpo vivo e não moribundo, fazer a outros corpos tudo o que os seus indivíduos se abstêm de fazer uns aos outros: terá de ser a vontade de poder encarnada, quererá crescer, expandir-se, atrair para si, ganhar predomínio — não devido a uma moralidade ou imoralidade qualquer, mas porque vive, e vida é precisamente vontade de poder. Em nenhum outro ponto, porém, a consciência geral dos europeus resiste mais ao ensinamento; em toda parte sonha-se atualmente, inclusive sob roupagem científica, com estados vindouros da sociedade em que deverá desaparecer o “caráter explorador” — a meus ouvidos isto soa como se alguém prometesse inventar uma vida que se abstivesse de toda função orgânica. A “exploração” não é própria de uma sociedade corrompida, ou imperfeita e primitiva: faz parte da essência do que vive, como função orgânica básica, é uma consequência da própria vontade de poder, que é precisamente vontade de vida. Supondo que isto seja uma inovação como teoria — como realidade é o fato primordial de toda a história: seja-se honesto consigo mesmo até esse ponto!” (BM 259).

Seria interessante iniciar o comentário desse aforismo observando a aparente contradição entre o supracitado “fato primordial de toda a história” (BM 259) e a ideia “de que não existem absolutamente fatos morais” (CI Os “melhoradores” da humanidade). Afinal, como é possível falar de um “fato primordial” se uma das ideias centrais de sua genealogia é a noção de que tudo que é humano e, sem exceção, sofre a ação do tempo? Apesar da aparente contradição, esse diálogo é possível justamente porque, como indica o filósofo, ele fala de “um fato primordial de toda a história”, ou seja, não há nenhuma universalidade no homem, mas apenas elementos historicamente persistentes. Na verdade, é isso o que geralmente confunde filósofos e cientistas sociais com relação ao humano; afoitos, chamam de “natureza humana” aquilo que é histórico, seja na forma de fisiologia ou cultura. Permanente, portanto, é apenas a “natureza” histórica, e essa é, à ótica da vontade de poder, “exploração”” (BM 259).

É assim, sem muitas metáforas e com uma linguagem clara e direta, que o filósofo nos avisa: “aqui devemos pensar radicalmente”, “até o fundo, e guardarmo-nos de toda fraqueza sentimental: a vida mesma é essencialmente […] e, no mínimo e mais comedido, exploração” (BM 259). Esse tipo de afirmação, que “em nenhum outro ponto […] a consciência geral dos europeus resiste mais ao ensinamento” (BM 259), não é apenas uma hipótese que se relaciona a uma ideia geral de exploração, mas é a vida mesma em suas estruturas mais básicas e nos campos mais diversos que, à ótica da vontade de poder, atua como: “apropriação, ofensa, sujeição do que é estranho e mais fraco, opressão, dureza, imposição […]” (BM 259). E isso é um problema para o homem moderno. Pois sufoca e esmaga o espírito civilizado desse tipo moderno, a compreensão de que talvez possa ser verdadeira a afirmação de que tudo que “no fundo esse mundo jamais perdeu inteiramente um certo odor de sangue e tortura […]”, e de que “ver sofrer faz bem, e fazer sofrer mais bem ainda” (GM II 6). Para o tipo manso e civilizado da modernidade, a crueldade não representa algo humano, demasiado humano, mas o horror e a vilania da imoralidade.

Os gregos e os povos da antiguidade, como exemplo oposto desse espetáculo de horror, já haviam compreendido que essa “crueldade” (FP 1885 43) natural e paradoxal não é apenas humana, mas divina. Assim, fizeram de seus deuses tudo aquilo que era demasiado humano na história, pois “[…] tampouco os gregos sabiam de condimento mais agradável para juntar à felicidade dos deuses do que as alegrias da crueldade.” (GM II 8).

Para as “ovelhas” da modernidade, contudo, a moral das “aves de rapinas” é uma absurda loucura, e celebrar as “alegrias da crueldade”, um verdadeiro contrassenso dentro da moral que tem a paz como bem supremo. Esse raciocínio, no entanto, tão comum às morais e virtudes modernas, é construído tendo como base a hipocrisia e o esquecimento. Pois somente quem convenientemente se esquece é capaz negar que mesmo no ato mais violento, mesmo no maior dos horrores morais — o homicídio — pode haver virtude. Que diria, por exemplo, um lacedemônio de nascimento que, via de regra, define a passagem para a vida adulta — no ritual da Cripteia — por meio da “caçada” e o homicídio de um escravo Hilota? Não seria essa uma virtude espartana? Um desígnio de sua capacidade e nobreza? Ou apenas crueldade? Ora, a questão aqui, portanto, não é apontar apenas à falsidade da criação de “valores em si”, mas acima de tudo, ressaltar a castração dos afetos negativados pela moral e a perigosa prática da criação de ficções idealizadas de homem e vida. Como disse o filósofo:

“Os sentimentos brandos, benevolentes, indulgentes, compassivos — afinal de valor tão elevado, que se tornaram quase os “valores em si” — por longo tempo tiveram contra si precisamente o autodesprezo: tinha-se vergonha da suavidade, como hoje se tem vergonha da dureza” (GM III 9).

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O problema, como se nota, é que o homem moderno, esse tipo humanista e compassivo de animal moral, compreende que a “exploração” é sofrimento, e que todo sofrimento deve ser evitado. Esse tipo moderno, hedonista por natureza, é incapaz de ver o sofrimento como uma forma de conhecimento útil, como algo natural, e assim, continua a almejar aqueles antigos ideais que buscam findar com o “caráter explorador” (BM 259) do homem: “abster-se de ofensa, violência, exploração mútua, equiparar sua vontade à do outro” (BM 259). Assim, elegem seus ideais de um futuro melhorado para a humanidade: a sociedade sem classes, o fim da desigualdade, a justiça social, o Welfare State, e outras tantas utopias de melhoramento e aperfeiçoamento do homem que buscam a paz no lugar da tensão.

É preciso esclarecer, no entanto, que não advogamos aqui uma defesa da crueldade e exploração desregrada, nem qualquer forma de retorno a modelos e morais do passado. A crueldade e a exploração são fatos, elas não precisam de defesa. O problema que buscamos apontar com essa discussão é a total incapacidade da moral ocidental em, de boa consciência, incorporar elementos moralmente negativos e atuar progressivamente para a “espiritualização” e ‘divinização’ da crueldade”, “a sacralização das forças mais poderosas, mais terríveis e mais bem-afamadas, dito com a imagem antiga: a divinização do diabo” (FP 1885 1).

Esse exercício, longe de ser um simples elogio de uma agressividade desmedida, compele à espiritualização das paixões, à sua incorporação: “não ter mais no primeiro plano a oposição entre os impulsos difamados” (FP 1885 1), o que, no polo contrário à castração pulsional, tem seu uso voltado na descoberta de estratégias para potencializar a tensão dessas energias explosivas de formas construtivas e enriquecedoras para vida. Como deixou claro em “O crepúsculo dos ídolos”:

“Todas as paixões têm um período em que são meramente funestas, em que levam para baixo suas vítimas com o peso da estupidez — e um período posterior, bem posterior, em que se casam com o espírito, se “espiritualizam”. Antes, devido à estupidez na paixão, fazia-se guerra à paixão mesma: conspirava-se para aniquilá-la — todos os velhos monstros da moral são unânimes nisso: “il faut tuer les passions” [é preciso matar as paixões]” (CI “A moral como antinatureza”).

Espiritualizar as paixões, portanto, não pressupõe nem um retorno à brutalidade de outrora, nem o extermínio desses afetos, mas a sua vivência transfigurada. Como deixou claro em uma anotação de 1888, sua tarefa é:

“O domínio sobre as paixões e não seu enfraquecimento ou extirpação! Quanto maior é a força de domínio de nossa vontade, tanto mais liberdade pode ser dada às paixões. O grande homem é grande por meio da margem de manobra [Spielraum] de liberdade de seus apetites, mas ele é forte o suficiente para, desses selvagens apetites, domesticá-los” (FP 1888 16).

Essa é a diferença da espiritualização de Roma contra a Judéia; da experimentação com os extremos do corpo e sua mortificação na estética sacerdotal; da moral de César contra São Paulo; ou da criação de um Deus que é espelho da potência de vida em oposição ao “deus” que é reflexo da miséria universal. Tal como o tipo de grande saúde da terapia nietzschiana, é aquele que é capaz de experimentar com essas tensões e fazer fruir em si mesmo — de boa consciência — esses afetos negativos, o tipo de homem que deve ser cultivado como promessa de futuro e de grandeza. Aqui, evidentemente, não há uma receita ou manual de conduta que prescreva como deve funcionar essa espiritualização dos afetos moralmente negativos. Mas se podemos intuir que a ideia de espiritualizar implica em um refinamento, uma mudança em sua função e forma, devemos também tomar o cuidado de não supor aqui uma supressão ou mesmo total desfiguração do afeto como é feito pela pequena terapia sacerdotal. Pois o “bom uso” e a espiritualização desses afetos ocorre, sobretudo, por meio de anos de experimento e tentativas, com atenção à peculiaridade de cada caso, mas ainda assim, do seu uso:

“Acreditamos que dureza, violência, escravidão, perigo nas ruas e no coração, ocultamento, estoicismo, arte da tentação e diabolismo de toda espécie, tudo o que há de mau, terrível, tirânico, tudo o que há de animal de rapina e de serpente no homem serve tão bem à elevação da espécie “homem” quanto o seu contrário — mas ainda não dissemos o bastante, ao dizer apenas isso, e de todo modo nos achamos, com nossa fala e nosso silêncio neste ponto, na outra extremidade de toda a moderna ideologia e aspiração de rebanho: como seus antípodas, talvez?” (BM 44).

Nesse contexto, poderíamos afirmar que paradoxalmente, o ultrapassamento do humano em um futuro “além-homem” começa com o reconhecimento de tudo aquilo que é demasiado humano em sua Naturgeschichte, começando justamente, neste caso, com os afetos moralmente negativos, como é o caso da crueldade.

“Ver-sofrer faz bem, fazer-sofrer mais bem ainda — eis uma frase dura, mas um velho e sólido axioma, humano, demasiado humano, que talvez até os símios subscrevessem: conta-se que na invenção de crueldades bizarras eles já anunciam e como que “preludiam” o homem. Sem crueldade não há festa: é o que ensina a mais antiga e mais longa história do homem — e no castigo também há muito de festivo!” (GM II 6).

Uma recuperação da neurose que configura a moral moderna passa obrigatoriamente pela aceitação da crueldade, pela sua espiritualização e, por que não, ao exemplo — mas não imitação — dos romanos em sua integração da crueldade aos mais supremos valores, à própria vida e a tudo que pode ser chamado de grande no homem. O filósofo e genealogista nesse contexto, deveria “ser quase desumano” (HH 1) em matéria moral (cristã), somente assim, como moralista (investigador da moral), poderia apontar as diferenças e hierarquias entre perspectivas morais, sobretudo aquelas que, por conta de sua imoralidade se apresentam como “demasiado humanas”.

“A vontade de volúpia”: a sensualidade contra o pudor moral”

Inaugurado por Nietzsche, o tema da sublimação do estímulo sexual é, ao lado da história do processo moral-civilizatório, o berço de toda a moderna psicologia de fundo freudiano. Apesar da famosa negação professada na Interpretação dos Sonhos, a realidade é que não é possível deixar de identificar similaridades entre o filósofo de Basiléia e o psicólogo de Viena (cf. GASSER, 1997). Afinal, muito embora ambos os autores possuam metodologias e as vezes até mesmo teses diferentes, eles coadunam em muitos pontos, como na identificação da renúncia à satisfação das pulsões na construção psicológica do humano; na hipótese de que essa castração afetiva é um tema central na formação do mal-estar moderno; e na argumentação acerca da possibilidade de uma sublimação das paixões, na forma de uma espiritualização ou enobrecimento dos afetos. Como destacou Almeida: “Nietzsche, a exemplo do que fará Freud mais tarde, recorre frequentemente a imagens que evocam o desvio da energia sexual para o domínio da criação artística, religiosa, cultural […]” (ALMEIDA, 2008). Esse redirecionamento das energias sexuais parece ser o cerne do problema que é abordado por Nietzsche ao referir-se à “sensualidade”, neste caso, tratando do sentido positivo dessa espiritualização na música, arte, e no “amor” (CI A moral como antinatureza), mas sobretudo, como uma crítica à sua forma negativa e castradora representada pelo ideal ascético e pelo sofrimento gerado por essa perspectiva.

Como foi demonstrado na terceira dissertação de “Para genealogia da moral”, o ideal ascético contamina todas as esferas da vida e representações humanas com o “ar de hospício” e “de hospital” (GM III 14) que emana de sua natureza doentia. Encontramos ramificações desse nefasto ideal, por exemplo, na teologia (GM III 1), filosofia (GM III 6), arte (GM III 5), ciência (GM III 14), no nacionalismo (GM III 26), na historiografia (GM III 26), e em toda a parte onde prevalece “o ódio ao “mundo”, a maldição dos afetos, o medo à beleza e à sensualidade, [em suma] um lado-de-lá inventado para difamar melhor o lado-de-cá” [VCS] (NT Prefácio 5). Diferente dos hábitos lascivos de gregos e romanos, a Weltanschauung cristã compreende a sensualidade como algo que deve ser desprezado, reprovado, suprimido, desviado de sua fonte vital e transfigurado em “pecado original”. “Essa espécie [de vida] hostil à vida” [VCS] (GM III 11) tem como objetivo a produção de um tipo doente de humano, podado em sua natureza, castrado de sua humanidade, em nome da castidade, e de um ideal de homem e pureza subverte-se tudo aquilo que é vigoroso e promotor da vida. Esse ideal castrador compreende como algo negativo tudo aquilo que, nos valores aristocráticos era tido como de mais alto valor, dentre estes, a virilidade e a sensualidade. Como resumiu o filósofo no livro que abre a “maldição ao cristianismo”:

Kitera Dent / Unsplash

“A Igreja combate a paixão com a extirpação em todo sentido: sua prática, sua “cura” é o castracionismo. Ela jamais pergunta: “Como espiritualizar, embelezar, divinizar um desejo?” — em todas as épocas, ao disciplinar, ela pôs a ênfase na erradicação (da sensualidade, do orgulho, da avidez de domínio, da cupidez, da ânsia de vingança). — Mas atacar as paixões pela raiz significa atacar a vida pela raiz: a prática da Igreja é hostil à vida…” (CI “A moral como antinatureza”).

Foi nesse pantanoso leito de rio cavado pelo sacerdote, envenenado pela culpa e pelo ressentimento que foi cultivada “[…] a hostilidade à vida, a rancorosa, vingativa aversão contra a própria vida” (NT Prefácio 5). Característica especificamente cristã, — mas não restrita a ela — o ideal ascético valoriza a ideia de permanência do ser à fluidez do devir; inventa uma realidade como oposição ao aparente; precede a razão sobre o corpo; e a alma sobre a materialidade da vida. Seu supremo ideal de valor é a perpetuação de uma vida que degenera, a negação de todo impulso vigoroso, por isso, seus valores contam com a negação da vida, de si mesmo, e de tudo aquilo que, em toda a parte já foi alguma vez compreendido como saúde e força:

“O cristianismo foi, desde o início, essencial e basicamente, asco e fastio da vida na vida, que apenas se disfarçava, apenas se ocultava, apenas se enfeitava sob a crença em “outra” ou “melhor” vida. O ódio ao “mundo”, a maldição dos afetos, o medo à beleza e à sensualidade, um lado-de-lá inventado para difamar melhor o lado-de-cá, no fundo um anseio pelo nada, pelo fim, pelo repouso, para chegar ao “sabá dos sabás”” (NT Prefácio 5).

Passada ao filósofo pela “precariedade de condições em que a filosofia surgiu e subsistiu” (GM III 10), o ideal ascético foi identificado nos primeiros aforismos da terceira dissertação da Genealogia como algo que contaminou tanto a arte de Richard Wagner, quanto a filosofia de Arthur Schopenhauer. Curiosamente, Nietzsche inicia essa dissertação com uma espécie de elogio a Wagner, apontando como no passado o autor de O Anel de Nibelungo foi um artista que perseguia “a mais alta espiritualização e sensualização da sua arte […]” (GM III 3), quando à época ainda caminhava sob as pegadas de Feuerbach e sua “sensualidade sadia” (GM III 3), “teria ele afinal desaprendido isso? Ao menos parece que no fim ele teve a vontade de desensinar isso… (GM III 3). Seduzido na velhice pelo ideal ascético, “Wagner virou o seu oposto” (GM III 2), pois nele passou a habitar uma espécie de “identificação e inclinação a conflitos de alma medievais” (GM III 4), uma tendência “obscurantista” (GM III 3) para “render homenagem à castidade” (GM III 2) e empreender “um hostil afastamento de toda elevação, disciplina e severidade do espírito” (GM III 4). Logo descobrimos, que a origem dessa mudança de rumo da nau wagneriana foi o recife da filosofia de Schopenhauer que ali encalhou de uma vez por todas o Holandês Voador. Afinal, “quem poderia sequer imaginar que ele teria a coragem para um ideal ascético, sem o amparo que a filosofia de Schopenhauer lhe ofereceu, sem a autoridade de Schopenhauer, predominante na Europa dos anos 70?” (GM III 5).

Como foi descrito no sexto aforismo dessa dissertação, Schopenhauer tomou para si a “concepção kantiana do problema estético” (GM III 6) como estratégia de recuperação e refúgio de sua existência torturada, contra a vida e “contra o interesse sexual” (GM III 6). Ao incorporar em sua filosofia uma noção de paz e “contemplação estética” (GM III 6) contra a “tortura” (GM III 6) da sensualidade negada, Schopenhauer encontrou um caminho para produzir aquilo que descreveu como “um efeito do belo, o efeito acalmador da vontade” (GM III 6):

“Escutemos, por exemplo, uma das mais explícitas passagens, entre as muitas que escreveu em louvor do estado estético (O mundo como vontade e representação, III, seção 38), escutemos o tom, o sofrimento, a felicidade, a gratidão com que foram ditas estas palavras: “Esse é o estado sem dor que Epicuro louvava como bem supremo e estado dos deuses; por um momento nos subtraímos à odiosa pressão da vontade, celebramos o sabá da servidão do querer, a roda de Íxion se detém…” (GM III 6).

A falsificação confessa do “désintéressement” da estética kantiana do belo fica evidente na filosofia de Schopenhauer, ali fala um espírito “torturado” (GM III 6), ali fala a negação de uma sensualidade que despreza a si mesma e desse desprezo faz sua filosofia. Schopenhauer “tratava realmente como inimigo pessoal a sexualidade (incluindo seu instrumento, a mulher, este instrumentum diaboli [instrumento do diabo]) […] (GM III 7). Incorporando a negação do ideal ascético, Schopenhauer elege a castração como prática filosófica e experimenta a neurose resultante da negação da vontade como eterno sofrer. Sua conclusão de que a vida é sofrimento não deve soar estranha àquele que compreende a pergunta:

“‘O que significa um filósofo render homenagem ao ideal ascético?’, eis aqui ao menos uma primeira indicação: ele quer livrar-se de uma tortura” (GM III 6).

A negação máxima se completa quando essa perspectiva torturada é levada a filosofar, pois sua conclusão, partindo do princípio de que a vida é sofrimento, é que: “o melhor de tudo é para ti inteiramente inatingível: não ter nascido, não ser, nada ser. Depois disso, porém, o melhor para ti é logo morrer” (NT 3).

Enfim, como filósofo e pesquisador, eu, Nilo Deyson Monteiro Pessanha, quis propositalmente trazer esse tipo de conteúdo e reflexão para libertar a consciência do leitor de algum tipo de impedimento no sentido de entender um texto e interpretar um autor pela reflexão filosófica. A quem desejar se aprofundar nessa pesquisa, eu coloquei algumas referências para você poder estudar. Enfim, gratidão ao Grande Arquiteto do Universo pela oportunidade de registrar mais um artigo para eternidade no mundo intelectual enquanto durar a modernidade de arquivar os escritos pelos meios da tecnologia.

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Sobre o autor

Nilo Deyson Monteiro Pessanha

Sou filósofo, escritor, poeta, colunista e palestrante, ator de teatro..

Meus trabalhos culturais estão publicados em diversas plataformas. Tenho obras e livros publicados e antologias.

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Sou uma incógnita que deve ser lida com atenção e talvez somente outras gerações decifrem meu espírito artístico. Sou muitos em mim e todos se assentam à mesa comigo. Posso não ser uma janela aberta para o mundo, mas certamente sou um pequeno telescópio sobre o oceano do social.

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Palestrante Nilo Deyson Monteiro Pessanha
Enviado por Palestrante Nilo Deyson Monteiro Pessanha em 09/11/2024
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