O Enigma da Identidade Azul
A memória, esse teatro nebuloso onde se encenam os fragmentos da vida, ora me oferta lampejos de uma existência outra, ora se retrai, como se temesse revelar segredos incômodos. Vez ou outra, essa lembrança trêmula me assalta, não com a certeza inabalável dos fatos, mas com a dúvida insinuante de algo que não se encaixa, como uma peça perdida de um quebra-cabeça que insiste em se furtar ao conjunto. Desde sempre, carrego comigo a sensação difusa de ser diferente. Diferente de quê? Perguntar-se-ia o leitor curioso. E é aí que reside o mistério.
Nascido entre iguais, vivi sob o manto da coletividade, mas, em algum ponto, percebi, ou talvez imaginei, que meu ser se distanciava da norma. O corvo, dizem, é negro por natureza, envolto num véu de mistério, à semelhança de todos os outros. Mas, ao olhar ao redor, ao fitar o reflexo na água, senti que a negritude que envolvia minha alma carregava uma tonalidade distinta, azul talvez, algo que não cabia nas fronteiras estreitas do que esperam de mim. Minha própria memória, no entanto, sempre traiçoeira, me nega a evidência concreta da diferença, como se fosse uma narrativa inventada por minha própria consciência inquieta, ansiosa por escapar da banalidade do comum.
A questão que me aflige é esta: será essa diferença real ou meramente um produto da minha imaginação? O olhar dos outros, como juízes silenciosos, não me acusa, tampouco me absolve. Se sou diferente, por que os demais não o percebem? Ou será que percebem, mas, por uma cortesia cruel, fingem ignorar? É nessa interrogação que minha psique se debate, como um pássaro enredado nas malhas do próprio voo. Busco nos outros um reflexo que não encontro em mim, mas, ao fazer isso, descubro que o espelho social não me devolve a verdade, apenas imagens fragmentadas, estilhaços do que eu gostaria ou temo ser.
Houve, certa vez, um momento em que julguei ter vislumbrado a resposta. Eu estava à beira de um lago, contemplando as águas que, ao seu modo, refletiam um pedaço do céu. Ali, naquela quietude momentânea, vi-me pela primeira vez com uma clareza quase angustiante. Meus olhos, tão negros quanto os de qualquer outro, fixaram-se nos meus próprios, mas algo no contorno do meu ser destoava da paisagem ao redor. Eu não pertencia, ou assim parecia. Havia uma dissonância entre a natureza que me envolvia e a essência que eu carregava. Senti, por um instante, como se o universo inteiro fosse uma imensa tela, e eu, apenas uma pincelada equivocada, fora de lugar. Mas, logo depois, como o nevoeiro que se dissipa ao calor do sol, aquela percepção também se esvaiu, deixando-me novamente no limiar da dúvida.
O que fazer, então, diante desse enigma? Seria mais fácil ignorá-lo, seguir a vida aparente, como todos parecem fazer. Mas a questão da identidade, essa velha companheira, não é tão facilmente desfeita. É o que diria um certo filósofo: o homem não se contenta em existir, ele deseja compreender o que significa existir. E, nesse caso, a diferença que sinto ou imagino não é apenas um detalhe superficial, mas um abismo sobre o qual equilibro minha própria consciência. Ser diferente não é apenas uma questão estética; é uma questão de sobrevivência psíquica. A diferença, verdadeira ou falsa, me define, molda meus passos e, paradoxalmente, é também o que me desintegra.
Há algo na psicologia social que talvez me ofereça algum consolo. Estudiosos da mente humana nos dizem que a identidade é, em grande parte, uma construção coletiva, um jogo de reflexos entre o indivíduo e o grupo. Ao me ver no outro, encontro-me a mim mesmo, ou assim deveria ser. Mas, quando esse reflexo me escapa, quando os contornos da minha própria imagem se desmancham diante do olhar do outro, o que resta de mim? O conceito de dissonância cognitiva poderia explicar parte do que sinto. Viver sob a constante tensão de ser igual e, ao mesmo tempo, profundamente diferente, gera em mim um desconforto intrínseco, um mal-estar que não pode ser facilmente resolvido. Será a diferença que percebo uma criação da minha própria mente, um artifício psicológico para justificar um sentimento de inadequação?
E há mais: não é apenas uma questão de comparação com os outros, mas também de autopercepção. A alteridade, dizem os estudiosos, não é apenas uma experiência de estar à parte, mas de ser reconhecido como tal. O reconhecimento, esse espelho incansável que o outro nos oferece, é ao mesmo tempo uma benção e uma maldição. Quando não somos reconhecidos na nossa singularidade, somos lançados no limbo da indiferença. Mas, se o somos, arriscamo-nos a ser isolados, marcados pela diferença que tanto ansiávamos. É uma armadilha sem saída.
Talvez, no fim das contas, a vida seja uma série de máscaras, e eu tenha apenas me acostumado a uma que não se ajusta bem ao meu rosto. Os filósofos existencialistas falam da angústia como parte intrínseca da condição humana, e eu começo a entender o que isso significa. A angústia de não saber quem somos, de não nos encaixarmos perfeitamente em nenhuma narrativa, de sermos sempre estrangeiros dentro de nós mesmos. O corvo que sou, talvez, nunca tenha sido verdadeiramente azul; talvez sempre tenha sido negro, mas, por algum erro de percepção ou desejo, pintei-me dessa cor. E agora, tento desesperadamente convencer-me de que essa é minha verdadeira essência.
Se me perguntassem, então, quem sou eu, responderia com a mesma incerteza que me acompanhou desde sempre: sou um corvo, talvez azul, talvez não. O que importa, afinal? A cor que carregamos, seja no corpo, seja na alma, não é mais que um detalhe fugaz. O que permanece é o movimento, a busca, o voo incessante em direção ao desconhecido, o eterno retorno ao espelho que jamais revela a verdade final. Talvez seja isso, no fim, o que todos nós buscamos: não a certeza de quem somos, mas a aceitação de que nunca saberemos.