Dois Milhões de Páginas
Hoje saí. Não como quem busca novidades, nem como quem anseia por aventuras. Saí porque o momento, de algum modo misterioso, assim o exigia. Depois de me expor em resumo, como quem lança no papel o prelúdio de uma ópera desconhecida, minha história já estava lá, nas entrelinhas do meu próprio existir. Meu prefácio, por mais modesto que pareça, antecipava de maneira sutil o que poderia acontecer; talvez fosse presságio ou mera fatalidade. Nas orelhas do tempo, já era visível o quão a vida havia me desgastado, como se eu fosse um velho volume de estante esquecido nas dobras do cotidiano. A juventude, aquela que outrora brilhara com a intensidade de um sol ao meio-dia, agora se desvanecia em um crepúsculo amarelado, e os dias passavam como páginas folheadas sem atenção.
A vida, contudo, é um livro de estranhas ilustrações. Cada lágrima derramada em seus momentos difíceis desenha, com precisão quase artística, as linhas do sofrimento. Não são lágrimas em vão; são gotas de uma tinta invisível, que marcam para sempre os cantos da alma. Cada lamento é uma gravura, cada suspiro, uma pincelada de dor e saudade. Ah, como é difícil escrever sob tais condições! Como é árduo existir, página após página, com o peso dos anos nas costas e a amargura das desilusões em cada linha. Espero, entretanto, que mesmo quando a tinta da minha vida se tornar amarelada, desgastada pela ação impiedosa do tempo, você ainda seja capaz de ler e deduzir toda a história.
Peço, com a mesma delicadeza com que um autor dirige ao seu leitor, que não me apresse. Não me coloque em suas mãos e folheie com ansiedade, como se quisesse chegar ao final antes de compreender o começo. Não tente ler além da próxima página, não se lance nas entrelinhas como quem busca um tesouro escondido. Ao contrário, leia-me devagar, como quem ouve uma melodia suave, aguardando pacientemente a próxima nota. Cada palavra tem um peso, cada frase carrega o fardo do que fui e do que serei. E se, por acaso, alguma passagem lhe parecer confusa, peço que não a abandone; leia-me como quem contempla um enigma, esperando que o tempo traga as respostas que talvez nem eu mesmo possua.
Hoje, meu caro leitor, é nosso primeiro encontro. Um encontro tímido, confesso, como quem estende a mão sem saber se será correspondido. Não reclame do meu título, peço-lhe encarecidamente. Ele não foi escolhido por mim, mas pela mão invisível que nos guia a todos. Somos páginas que se escrevem sozinhas, às vezes sem escolha, às vezes sem controle. O título, portanto, é apenas uma convenção, uma tentativa de definir o indefinível, de rotular o que está além das palavras. Não julgue, pois, pelo título; julgue pelo conteúdo, se é que isso lhe é permitido.
Quanto à minha capa, não espere grandezas. Não é de couro chique, nem traz ornamentos de ouro. É uma capa simples, feita com o que havia à disposição. Talvez seja um reflexo da minha própria existência: um tanto rústica, um tanto desleixada, mas sincera em sua simplicidade. Não se deixe enganar pelas aparências. O exterior pode ser frágil, gasto, como uma pele que já viu muitos sóis e muitas luas. Mas o interior, ah, o interior guarda segredos que só os olhos mais atentos poderão desvendar. E se porventura você se dispuser a me ler com a paciência que peço, talvez encontre mais do que esperava.
Entretanto, temo pela pressa do tempo. Temo que, assim como tantos outros volumes antigos, eu acabe relegado a uma prateleira esquecida, sem que ninguém se dê ao trabalho de me compreender. Há uma angústia silenciosa em ser lido superficialmente, em ser julgado pelas primeiras páginas, sem que se alcance o cerne do enredo. Cada parágrafo que escrevo é uma tentativa desesperada de comunicar algo que nem sempre sei expressar, e, mesmo assim, a leitura apressada muitas vezes se perde nos detalhes. O medo de ser mal interpretado, de ser resumido em um parágrafo qualquer, é o que mais me atormenta.
Há, no entanto, uma esperança. Uma esperança de que, apesar das vicissitudes, alguém, em algum lugar, me leia como eu desejo ser lido: com atenção, com cuidado, com a paciência de quem compreende que a vida não se resume a uma passagem rápida. Cada capítulo é uma etapa, e mesmo os momentos mais difíceis, aqueles que parecem intermináveis, têm seu valor. As ilustrações da dor, as gravuras do sofrimento, todas elas fazem parte de uma narrativa maior, que só se revela àqueles que se dedicam à leitura completa.
E, se por acaso chegar ao fim dessa leitura, espero que não seja com a sensação de que tudo passou rápido demais, mas com o sentimento de que valeu a pena cada página. Pois, afinal, a vida é isso: um longo romance, muitas vezes incompreendido, mas que, em suas últimas linhas, deixa transparecer a beleza de cada momento vivido.