OITENTA ANOS

Oitenta décadas se passaram e cá estou eu, ainda entre os vivos, sem remorsos, mas com a certeza de que, na maioria das vezes, agiria de forma diferente.

Faço parte da geração que viu o homem pisar na lua e analisar o solo de Marte, viu as carroças puxadas por animais se transformarem em veículos autônomos e a energia nuclear ser usada para matar e salvar vidas. Assistiu o surgimento de telefones celulares, microcomputadores, aviões supersônicos, imagens dos confins do universo, o sequenciamento do genoma humano e estamos sendo testemunhas do desmembramento da placa tectônica africana.

Na atualidade, mudaram-se os costumes, os relacionamentos entre pessoas e empresas, as manifestações artísticas e folclóricas, os meios de transporte e comunicação, a linguagem coloquial, as formas de diversão pessoal ou coletiva, as drogas viciantes e os bandidos, antes lobos solitários, organizaram-se em empresas com ramificações em todas as áreas da sociedade.

Mudou até a faixa etária das pessoas que encontramos pelas ruas, que antes eram famílias jovens com quatro, cinco, por vezes até mais crianças. Hoje são idosos (eu no meio deles), raramente acompanhados por parente ou cuidador. Essa alteração dos costumes causa espanto e preocupação pelos rumos que podem tomar, pela decadência explícita e pela falta da previsibilidade que era parte integrante e inseparável da maioria deles.

Nasci na década de quarenta e como toda criança daquelas priscas eras, só vim tomar conhecimento de que havia um mundo lá fora quando fui para a escola, pois até completarmos sete anos, aprendíamos em casa as primeiras letras, a escrever o nosso nome completo, a reconhecer as cores, ler as horas, os rudimentos da Aritmética, a lidar com a moeda vigente e suas frações, o nosso endereço e qual ônibus deveríamos tomar para voltar para casa. Também que os nossos pais tinham nomes diferentes do papai e mamãe que sabíamos desde sempre.

Na década de cinquenta, o fato marcante e altamente comentado foi o suicídio do ditador Vargas, exaltado como grande estadista, “pai dos pobres” e outros títulos característicos dos demagogos, mas apesar da comoção generalizada a república permaneceu no vendaval de oportunistas ávidos pelo poder como desde a sua implantação.

Conclui o curso primário e entrei no Ginasial. Em vez das quatro matérias fundamentais ministradas por uma só professora, mulher paciente, “quase mãe”, impuseram-nos onze matérias com professores homens, sisudos, sempre com pressa que escreviam no quadro negro coisas ininteligíveis para a maioria dos 50 pré-adolescentes boquiabertos diante daqueles enigmas. Houve a inauguração da Hidrelétrica de Paulo Afonso para aposentadoria dos candeeiros. O Brasil começou a produzir o “fusquinha”, sagrou-se campeão da FIFA e o mundo conheceu o Rei Pelé. No último ano da década, morreu o meu avô e aquela casa com quintal grande, quase um sítio, aonde eu passei os melhores momentos da minha infância, deixou de existir e, em preto e branco, houve a transmissão inaugural da TV Jornal do Commercio, no Recife.

Na década de sessenta, houve a inauguração de Brasília; a renúncia do presidente, a baderna causada pela tentativa de implantação do comunismo pelos comparsas do vice-presidente, o retorno da ordem com os militares assumindo o poder, tivemos as ações terroristas dos vagabundos da extrema esquerda que hoje são considerados “heróis do povo brasileiro” e atualmente no poder. Houve caça às bruxas, perseguição aos baderneiros, a censura, mas também houve a tranquilidade entre os ordeiros, incremento na infraestrutura do país, o florescimento da cultura com realização de festivais de teatro, música, feiras de livros, encontros literários, filmes e novelas de televisão.

O nefando esquerdismo se propagava nos grupos de juventude ligados à igreja, no submundo dos bares e ambientes escusos, sempre em conversas a meia voz entre os intelectuais vadios e vazios, baluartes da democracia, da liberdade e da autodeterminação que, mais tarde, se revelariam oportunistas seguidores de Gramsci, Lênin, Mao...

Concluí o curso Técnico em Contabilidade e fui escolhido para orador da turma. Consegui o primeiro emprego, passei no vestibular da UNICAP (curso de História Natural), mas as alterações que foram feitas no currículo tiraram todo encanto do curso e eu o abandonei.

Estive professor de História do Brasil, participei de dois grupos de teatro (amadores) e estreei no Teatro de Santa Izabel. Participei do Clube de Poesia do Recife, do coral e da equipe de liturgia da igreja matriz do Barro. Encantado pela fé católica, pretendi ser Frade Carmelita, mas ainda bem que o meu confessor demonstrou em conversa franca e honesta que eu não possuía as premissas para a vida sacerdotal tal como ela deve ser.

Na década de setenta, casei e me tornei pai duas vezes. Comprei casa e o primeiro carro. Para melhorar como profissional, entrei por vestibular na Faculdade ESUDA (curso de Economia) e depois na UNICAP (curso Administração de Empresas), mas a falta de dinheiro me obrigou a abandonar os dois cursos, porque por não negar ter casa própria me foram negados os financiamentos oficiais. (Rui Barbosa tinha razão ao dizer que o “homem sente vergonha de ser honesto”).

Vi o Brasil se tornar potência mundial na produção agrícola com as fazendas instaladas no bioma Cerrado.

Nas décadas de oitenta e noventa, os militares entregaram o poder aos civis e a partir de então, se acumulam as barbaridades que os incompetentes eleitos vêm fazendo. Os comunistas que haviam sido tangidos, foram anistiados e voltaram para o país com a determinação de destruir o ensino formal, a cultura do belo e tudo mais que represente a autossuficiência a fim de distribuir a pobreza e se perpetuarem no poder com a distribuição de migalhas através de bolsas qualquer coisa, pela força da corrupção e pelas fraudes nas eleições como faziam os coronéis, chefes políticos dos antigos currais eleitorais redivivos na atualidade.

A inflação galopante fez surgir os muitos planos econômicos, houve sequestro das contas bancárias e tabelamento de preços, cortaram-se doze zeros da moeda que mudou de nome várias vezes até que em 1994 foi instalado o Plano Real que, por algum tempo estabilizou o poder de compra tirando milhares da miséria absoluta, mas por não serem seguidas as premissas básicas de:

- tolerância zero com a corrupção;

- gastar menos do que a arrecadação e apenas com o necessário;

- eliminar empresas estatais;

- simplificar os impostos;

- reduzir o número de funcionários públicos nos três níveis da administração direta;-

- deixar a cargo da iniciativa privada a prestação dos serviços básicos;

- criar núcleos de excelência no ensino e simplificar as leis para incentivar a criação de postos de trabalho, o fantasma da hiperinflação voltou a ser fator de preocupação, também porque os outros dois poderes, que por determinação legal deveriam colaborar, mantiveram-se nababescos, paquidérmicos e inúteis como sempre. E o que poderia ser o ponto de partida para o enriquecimento da população em geral, revelou-se apenas um “voo de galinha” no jargão da Economia e amargamos altas taxas de desemprego por não dispormos de pessoal capacitado para ocupar as vagas geradas pelas novas tecnologias.

Em 1991, esquerdopatas da pior estirpe reunidos na cidade do México, criaram o nefando Foro de São Paulo com o objetivo de implantar o comunismo em todo o continente e a partir de 1994, as eleições brasileiras são feitas por meio eletrônico sem emissão de comprovante que assegure a lisura do pleito. Nesta década, aposentei e vi nascerem minhas duas netas.

Em 2000, mudamos ao mesmo tempo de milênio, de centenário e de década, mas as esperanças de melhorias se morreram como das outras vezes, porque não mudamos nossa maneira de agir e para desgraça geral, em 2002 na disputa pela presidência por dois esquerdistas o país foi entregue ao comunista apedeuta que se orgulha de nunca ter lido um livro.

Fiz vestibular e entrei na UFRPE (curso de Ciências Biológicas), dessa vez apenas para realizar o antigo desejo de possuir diploma em terceiro grau, porque com quase sessenta anos, já estava morto para o mercado de trabalho.

Fui escolhido pelos colegas como orador da turma e o meu TCC sobre Comportamento Animal já foi citado nas referências bibliográficas de Dissertações de Mestrado das UFPE e UFMA. Depois de diplomado, tive a honra de ser membro de três bancas examinadoras e de ser coorientador em duas monografias.

Durante o curso, dentro de laboratórios, no campo ou em bibliotecas, estudei as Ciências Biológicas e da Natureza inanimada. Por fora dele estudei Sociologia, Literatura, Filosofia geral e das Religiões, participei do Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre o Imaginário ligado à pós-graduação em Antropologia da UFPE.

Em 2008, fiz a inscrição no Recanto das Letras onde tenho publicados mais de mil e quinhentos textos, os quais se impressos e considerando a média usual de 30 textos por volume, dariam 50 livros e graças ao inusitado número de leitores, coloquei na prateleira dos descartados a ideia de publicar o que escrevo, porque jamais atingiria tal público e como sabiamente dizia um colega de saraus, “a ilusão de publicar livros, geralmente, se transforma em prejuízo financeiro”.

E assim como devem ser todos os atos praticados por pessoas civilizadas e honestas, vendemos a casa e oficializamos o divórcio consensual sem inimizade ou ressentimentos.

Na década seguinte, 2010, realizei os antigos desejos de fazer um cruzeiro marítimo, conhecer Itália e Portugal na Europa e nas Américas, o México e Perú, (principalmente Machu Picchu). Tive a desagradável experiência de morar só. Mudei para Santo André/SP e casei outra vez, porque “não é bom que o homem esteja só” (Gn 2:18) e definitivamente, o Frade tinha razão quando disse que eu sou incompatível com o celibato.

Nesta década 2020, tenho a consciência de que a minha opinião só interessa a mim.

Nada tenho para pedir, mas tenho muito para agradecer.

Diariamente arrumo a cama em que dormi, auxilio nas tarefas domésticas e sob os cuidados da esposa, mantenho-me limpo da cabeça aos pés, sempre bem vestido e perfumado como os belos príncipes das histórias infantis.

Escrevo o que penso e leio o que gosto apenas por distração.

Cultivo amizades com admiração e respeito.

Acompanho os problemas nacionais sem tentar ser causa ou a solução deles.

Minimizo tudo que posso, amo, sou amado e em harmonia, desfruto a tranquilidade dos que vêm ao mundo em férias...

GLOSSÁRIO

Barro – Bairro a Oeste do Recife, entre Areias e Tejipió.

ESUDA – Faculdade Esuda

Gn – Gêneses, 1º livro da bíblia. Capítulo 2, versículo 18

Igreja matriz – Igreja de Nossa Senhora da Conceição.

FIFA – Federação Internacional de Futebol Association

Santa Izabel – Teatro de Santa Izabel – Recife/PE

TCC- Trabalho de Conclusão de Curso, monografia.

UFMA - Universidade Federal do Maranhão

UFPE – Universidade Federal de Pernambuco

UFRPE – Universidade Federal Rural de Pernambuco

UNICAP – Universidade Católica de Pernambuco