as águas de nós dois

é do nosso feitio - errado, diga-se de passagem - esperar que as coisas não mudem. querer banhar-se duas vezes (e bolinhas) no mesmo rio, sem que as águas mudem. querer que o quebra-cabeça montado continue mostrando o quão bonito ficou o encaixe das peças. querer que o amor seja o sim para todas as nossas questões. todavia, todas as coisas mudam. as pessoas mudam. mudamos eu e você. quando for a uma cachoeira, não esperar encontrar a mesma paisagem que viu da última vez. assim como ver o céu de hoje, não será igual ao de ontem. assim como olhar a nossa fotografia que estava perdida no meu livro favorito. vê-la me arrancou um sorriso saudoso com as coincidências da vida. em meios as páginas desse velho livro, com marcas do tempo, coincidentemente, com o título de mar morto do querido jorge amado, havia uma fotografia antiga nossa, que eu não me recordava mais, em preto e branco, de nós dois na praia. estamos os dois num céu sem nuvens. você sentado, a uma pequena distância de mim, distraidamente, me observando como seu fosse a tua obra de arte favorita. quanto a mim, estou deitada sob a manta, com um boné, protegendo os olhos do sol que devia fazer, enquanto seguro um livro e leio. você achava graça que eu sempre carregava um livro comigo, aonde fosse, mesmo que não lesse. é minha cara ler em meio a praia. sempre foi meu lugar favorito. não me recordo quem tirou a fotografia. há apenas uma frase no verso, que diz: “é doce morrer (viver) no mar” e a data. acho impossível pensar em nossa história dissociada das águas. rios desaguam na costa e esses litorais nos uniram e diluíram nossos seres. as águas que brotam das páginas desse livro, do dia de praia da fotografia, o conjunto de decisões tomadas completamente alheias à presença um do outro que nos conduziram até o momento em que nos conhecemos. se o destino nos uniu? não sei, gosto de acreditar que sim, que o acaso, o universo, a sorte, o inesperado lançam suas cordinhas e fazem o mundo girar. e que giro até a gente se achar em meio a tantas pessoas nesta cidade. coincidentemente esse livro, diferente dos demais de jorge amado, é um romance épico (assim como nosso), onde toda a prosa é guiada, traçada, alicerçada a partir das águas do mar da bahia. nas entrelinhas do romance tem crítica social, mitologia, escrita visceral que encanta e choca. que te amar seja sempre intenso e apaixonante como ler jorge amado e que ler nossa história nessa fotografia seja tão deliciosa quanto te amar. é, “se o mar é só mar, desprovidos de apegos”, como escreveu cecília meireles, amar você é como mergulhar no oceano e torce para não afogar porque já não somos mais um do outro. acho que nunca senti tanto a sua falta como ao olhar a bela imagem que fazíamos na fotografia. sim, sei que um encontro nosso agora seria uma catarse perigosa e atordoante, por não haver mais como esperar encontrar quem fomos um dia. quando for ao mar, idem. a mim, só cabe se adaptar, sabendo que para o mar, você e eu também somos metamorfose. quando reencontrar uma pessoa, esperar para ver qual o novo momento dela. confesso que sinto curiosidade de saber como você está. tomara que melhor. mais calmo. consciente. e eu também. lutando para isso. guardo a fotografia no livro e devolvo-o a estante. quem sabe a maresia nos alcance num dia de sol.

Belinda Oliver
Enviado por Belinda Oliver em 14/08/2024
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