Obra prima
Já faz um tempinho que planejava escrever sobre Ripley, minissérie lançada pela Netflix no começo de abril deste ano, capaz de trazer personagens emblemáticos e tornar as anosas máquinas de escrever um importante elemento na trama. A carga dramática, o enredo carregado de suspense psicológico, somada à precisão do roteiro e a estonteante fotografia, fizeram a produção neo-noir, protagonizada pelo ótimo Andrew Scott, ser capaz não apenas de alvejar o coração, como até arrancar suspiros poéticos de vários assinantes da gigante do streaming. Criada, escrita e dirigida por Steven Zaillian, a obra, dividida em oito capítulos, busca inspiração lá nos idos de 1955, ano de lançamento do romance policial “O talentoso Ripley”, assinado pela lendária de Patricia Highsmith.
Tom Ripley é um transgressor que vê a sua sorte mudar ao ser contratado por um homem poderoso que quer mandá-lo à Itália para encontrar seu único filho, Richard (Dickie) Greenleaf, e dissuadi-lo a retornar ao EUA. No entanto, meticuloso e calculista, Tom também se revela um assassino impetuoso, disposto a apostar a própria pele para se infiltrar no mundo de Greenleaf, chegando a assumir sua identidade depois de friamente ceifar sua vida, impondo o mesmo destino a quem atravessar seu caminho.
Para compor um personagem tão complexo e desafiador, Andrew Scott emprestou um pouco de carisma para ocultar a total ausência de consciência, compaixão ou empatia do sínico homicida. Os nefastos planos de Ripley vão sendo revelados enquanto o ator, com maestria, transmite a ausência de humanidade do protagonista, mas a despeito do verdadeiro show de atuação, Scott não brilha sozinho de maneira alguma. A minissérie também é marcada por notáveis atuações de Johnny Flynn (Dickie), Maurizio Lombardi (inspetor Ravini) e Dakota Fanning (Marge).
As atuações não são a única cartada de Ripley. A fotografia desponta como um recurso estonteante, despertando fascínio no espectador diante da precisão dos enquadramentos e desperta sua imaginação, fazendo-o incessantemente colorir as passagens no âmbito de um processo mental. O roteiro também é de alta eficiência. Abre mão de qualquer celeridade para decorrer no ritmo próprio, alimentando o delicioso clima de suspense.
Vale lembrar que o personagem Tom Ripley roubou a cena outras vezes no cinema. Em 1960, foi encarnado por ninguém menos que o icônico Alain Delon, no longa “O Sol por Testemunha”. Em “O Retorno do Talentoso Ripley”, de 2004, há uma versão mais madura do personagem, interpretada por John Malkovich. O filme mais famoso foi lançado em 1999, e traz Matt Damon no papel principal.
Máquinas de Escrever
"TEC-TEC-TEC. A série também estabelece uma importante interação com os adeptos do mundo mecanográfico. As máquinas de escrever assumem lugar na tela o tempo inteiro, mas de forma alguma se resumem a meros elementos decorativos, assumindo até certo protagonismo pela peculiar maneira como são inseridas no enredo. Não apenas aparecem atreladas aos personagens como assumem a condição de ferramenta para espelhar sua essência.
Os modelos de máquina também, diante dos mais atentos olhares, servem para caracterizar personagens, pelo menos aqueles no centro da trama. Enquanto o protagonista Tom Ripley ostenta a clássica Underwood, que embora excessivamente bela, pode parecer um tanto “fora de moda” no âmbito da burguesia, o jovem fidalgo Dikie Greenleaf adota a portátil, moderna e cheia de estilo Hermes Baby Rocket. CLAQUE!
Mesmo os não adeptos aos anosos apetrechos apinhados de teclas, podem se emocionar diante de um personagem que está bem além de um vilão clássico ou um anti-herói repleto de facetas excêntricas e caráter controverso. O espectador acaba assumindo certa admiração pela figura peculiar cercado por agruras e de acentuada dimensão psicológica, com conflitos que vão bastante além de um mero suspense. Não aposta em um conteúdo necessariamente apropriado para todos, por exigir apurado poder de observação. É imprescindível apurar a capacidade cognitiva para esmiuçar tantas passagens aparentemente descompromissadas. Aquele capaz de capturar esse espírito ficará absorto e terá uma experiência deveras inspiradora.