às flores do mal
"quem colocou esse cérebro dentro de mim?
chora, exige, diz que há uma chance.
não vai dizer
“não”.
Charles Bukowski.
Estou velho, irreversivelmente velho. E talvez a aparência ainda viçosa esconda essa maioridade, porém o tempo passa e vai dissolvendo tudo que toca. Pensar nas coisas não é suficiente para mudá-las, até porque há coisas das quais não podemos mudar. O jeito, então, é aceitá-las, simplesmente. Porém, e se houver coisas das quais não sejam possíveis aceitar? Chorar seria o caminho? Não tenho mais muitas lágrimas, não me restaram tantas desde que as chorei um tempo atrás. Quando chorei o amor, as incertezas, medos, ou como nas vezes onde chorei os sonhos — todos mortos, aliás. E não me arrependo dos momentos em que chorei, foram todas lágrimas sinceras. De falso, tive apenas alguns sorrisos. É. Verdadeiramente há coisas das quais não podemos mudar, e nós somos uma delas. Afinal, quem eu poderia ser quando eu não estivesse sendo eu mesmo, não é? As coisas são como são e “tu não te moves de ti”, disse ela.
Então acordo, o sol já está quente, permaneço mais um tempo na cama, olho o celular e volto a dormir. Duas horas depois, eu novamente acordo. Lamento ter dormido tanto, lamento sentir como se tivesse perdido algo. Mas perdido o quê? O que eu deveria ter vivido e não vivi? Eu estou cansado. Estou casado de tanto esperar, de ter esperança. Então, levanto da cama. Lavo o rosto, tomo um café, olho pela janela, assisto algumas besteiras e me deito novamente. Em dias de trabalho, vou trabalhar. Quando não há trabalho, eu apenas me deito. Eu estou bem. Lavei algumas roupas, dormi bastante à noite, acordei cantando, nem muito agitado, nem muito preguiçoso, eu estou sereno, somente sereno. Estou bem. Arrumei as roupas velhas, também limpei os sapatos empoeirados, comi uma boa comida feita por mim mesmo e comprei um sorvete no almoço. Durante a noite fiz a barba e tomei algumas cervejas. Eu estou bem. Dormi bastante à noite, lavei algumas roupas, vi um bom filme, na verdade, três só no dia de hoje, à noite cantarolei diversas canções diferentes da época de infância. Eu estou bem. Eu arrumei as roupas velhas, comprei um sorvete no almoço, dormi bastante a noite, lavei algumas roupas, a comida era boa e eu mesmo a fiz. Eu estou bem, estou sereno. Eu estou cansado. Eu deveria estar morto.
Enquanto isso, contrário a toda desesperança de um mundo cruel, nasceu uma flor, bem no asfalto. Numa pequena rachadura do meio fio. Regada à lama podre das massas e ao resquício de toda dor cotidiana, ao calor escaldante e ao implacável som da violência urbana, nasceu uma pequena flor. Não se sabe quando, como ou por quê, mas ela nasceu perante o acaso. Os carros passam apressados, os passos também são ligeiros, estão todos a caminho do nada. Os olhos denunciam a dor, alguns, mais frágeis, desistiram, outros estão anestesiados de toda essa repulsa. A sua volta, os crimes da carne não encontram a justiça. Os pequenos também morrem pela bestialidade humana. Bestial, o homem sepulta outro homem no chão da calçada. Pobre flor, teve que ver tudo isso. Em contrapartida, os carros e passos cederam, estão todos admirando o espetáculo, por um instante tudo parou. Susto? Medo? Inveja? Finalmente, alguém partiu daqui. Se para algo melhor, não saberemos. Os agentes lavam a calçada. Pobre flor. Regada com sangue de um inocente, um inocente pecaminoso. O alívio fica por conta de que esta flor parece ser melhor que tudo isso. Tem que ser melhor que isso, precisa ser melhor. É a resposta da natureza. Em meio ao nada, por uma fresta entre a escuridão e a luz, ela nasceu. Deveria ser melhor que todos nós, alguma coisa precisa ser melhor que todos nós, mas talvez não seja.
Seu fim será igual. Abandonada por ser insuficiente demais, não regada e nem mesmo admirada pelo simples fato de não ser ao menos vista. Negligenciada. Pobre flor, resumida e classificada por aquilo que é, somente uma flor. Uma esperança vazia. Somente mais uma inocência perdida durante todo o espetáculo. Um manifesto de Deus. E ninguém cuidou. Ninguém amou. Ninguém a viu.
Obrigado por isso!