Conversa com o ódio
Eu me sentei diante daquele senhor, tão estranho, que chamavam de Ódio.
Tenho citado seu nome tantas vezes que ao invocar, ele veio. Senti-me como que tomada por um fogo que me cegava, e disparei, feito uma metralhadora, a dizer absolutamente o quanto eu odiava.
Transformei-o de substantivo próprio em verbo, e esse verbo, no gerúndio, que vinha regendo meus dias, era o resumo da minha vida naquele terrível Julho.
_SIM!
Gritei irritada e sentindo o próprio Sr. Ódio dentro de mim.
_EU ODEIO! E começo por esse mês, eu odeio julho! Odeio do início ao fim. Odeio o fato desse maldito mês existir!
Como uma chama em mim, como algo que se aproxima do ápice, meu grito de desespero e prazer veio no momento alto do que se sucedeu:
_Eu odeio a senhora de mim que me tornei. Odeio amar acordar cedo a cada manhã, com a energia corrompida, com as costas doendo e um cansaço que me corrói a alma jovem. A pele, ainda macia, já carrega consigo os anos que eu andei sob o sol, e demanda tempo, atenção, cuidados. Eu odeio todos os cuidados com a pele que uma senhora deve ter. Odeio, também fazer exercícios, sem os quais, essa senhora permanece com dores nas costas e nas juntas e tem uma questionável flexibilidade em seu desempenho sexual. Aliás, é algo que não odeio, por si só, e talvez, mesmo que mude com o tempo, nunca odiarei. Sempre amarei todas as entranhas que se expõem ao mais absurdo, vil e obsceno dos prazeres.
Odeio os horários prontos para comer, a memória de aguar as plantas, de por ração ao gato que mia meu nome de forma quase audível. Eu odeio quando os lençóis precisam ser lavados e os que tenho já não ornam com a decoração da cortina. Odeio pisar em partes de brinquedos e ter que me lembrar se há ou não feijão pronto. Odeio com todas as minhas forças as cobranças do meu ofício. Odeio as novelas atuais, e já não assisto mais televisão. E quando eu me sento para escrever, eu descubro que eu odeio exatamente todas as coisas que eu construí sobre mim mesma para me tornar a senhora de mim.
Eu amo o corpo que construí com os exercícios que odeio, amo a pele macia e tenra que construí com os cremes, amo tocar-me e amo minhas plantas, meu gato, assistir novela nas tardes de dias nublados, amo meus filhos e amo vê-los brincando, amo pensar em como costurar um ou outro traje na máquina de costura que comprei pela internet. Eu ainda não sei passar a linha, e isso precisaria de um manual, ou mesmo de assistir um vídeo que ensinasse. Então eu estou em um momento engraçado, veja bem.
Suspiro um pouco, como quem toma ar para conseguir explicar melhor seu raciocínio.
_Eu vivo em um paradoxo que para manter todas as coisas que amo, eu preciso fazer todas aquelas que mais odeio. Então, Sr. Ódio, eu talvez seja uma pessoa masoquista, ou tenha que aprender a amar o processo, ou ainda não tenha entendido que eu não odeio tanto assim. Se eu pudesse eliminar alguns processos, sem prejuízo do final, eu eliminaria todos os que sinto que está bem aqui, perto e dentro de mim. Mas aí, eu não seria essa senhora, eu seria outra. E se tem uma coisa que eu amo, é ser essa senhora.
Olho para o Ódio e ele olha para mim com olhar jocoso.
_O prazer foi todo seu.