Realidade simulada (um pouco mais de Charles Baudelaire)

Uma expressão bastante ouvida é que quem envereda pelo caminho das drogas está buscando a fuga da realidade, pelo menos da realidade individual percebida. Não deixa de ser verdade. As drogas inegavelmente fazem mal à saúde. O próprio Baudelaire, ao mesmo tempo em que faz apologia ao haxixe, também alerta: "... posso afirmar que não rirá muito tempo aquele que tiver estabelecido comércio com o ópio."

A realidade é de difícil definição, portanto, como explicar a fuga de uma coisa que não se tem uma clara ideia do que seja? Será que ler e se envolver na leitura também não é uma fuga da realidade? Ou observar um fenômeno da natureza também não é? Se entregar a uma emoção, como amor, admiração, raiva, prazer, também não seria?

Creio que tudo isso seja fuga da realidade, com a diferença que umas são saudáveis e outras não.

Em outro trecho, Baudelaire afirma: "Aquele que puder recorrer a um veneno para pensar, em breve não poderá mais pensar sem veneno." Ou seja, fugir da realidade, quase sempre leva à dependência, principalmente se a causa é de impacto mais imediato e mais intenso, como alterações psicossomáticas percebidas no consumo de drogas, pois são de efeito instantâneo. Os prazeres mais sutis são os menos estimulados, pois não são todos os espíritos que percebem e se comprazem com as tenuidades das pequenas felicidades.

Quem sucumbiu aos efêmeros e contundentes deleites da felicidade proporcionada pelas drogas, se surpreende com o bem-estar causado pela mudança de vida ao se abster de tais costumes, como Baudelaire explica nesta citação: "Pouco antes de 1816, o mais belo, o mais límpido ano de sua existência, ele nos conta que passou subitamente, e quase sem esforço, de trezentos e vinte grãos de ópio, ou seja, oito mil gotas de láudano, a quarenta grãos diários, diminuindo assim seu estranho alimento de sete oitavos. A nuvem de profunda melancolia que se abatera sobre seu cérebro dissipou-se num só dia, como por um passe de mágica. A agilidade espiritual reapareceu, e ele pôde novamente crer na felicidade." Percebe-se um despertar para a realidade mais palpável, onde possibilidades de uma vida mais prazerosa se descortina antes os olhos e um desejo de usufruir do que está ao alcance, suscita uma pressa de viver para poder aproveitar ao máximo.

Os olhos se abrem para detalhes que antes passariam despercebidos em razão do torpor que nubla as vistas e a mente. Em outro ponto ele pergunta "Uma bela habitação não torna o inverno mais poético, e o inverno não aumenta a poesia da habitação?" Com certeza, esta inspirada observação tenha sido causada por um instante de sobriedade que ele experimentou. E, complementando, mais a frente ele diz: "Mas por que não consentir num abatimento momentâneo, de alguns dias? Não há abatimento; não é nisso que consiste a dor. Ao contrário, a diminuição do ópio aumenta a vitalidade; o pulso é melhor; a saúde se aperfeiçoa; mas resulta dele uma pavorosa irritação no estômago, acompanhada de abundantes suores e de uma sensação de mal-estar generalizado, que nasce da falta de equilíbrio entre a energia física e a saúde do espírito." Os efeitos negativos da suspensão do uso do ópio são causados pelo estrago decorrente do esforço que o sistema de defesa do corpo faz para eliminar a substância estranha, em quantidade acima do que o corpo suporta e da constante consumo.

Não sairia impune um organismo que foi sujeitado a ataques dessa gravidade.

As ilusões causadas pelos entorpecentes tem outra causa negativa: a volta à realidade traz consigo a percepção de que os prazeres vividos são frutos de sonhos, da imaginação potencializada pelo alargamento ou dissipação das fronteiras mentais construídas pelos costumes, pela moral e pela sociedade. Baudelaire assim descreve: "Da mesma forma o comedor de ópio transformava em realidades inevitáveis todos os objetos de seus sonhos. Essa fantasmagoria toda, por mais bela e poética que fosse na aparência, era acompanhada de uma angústia profunda e de uma negra melancolia. Parecia-lhe, cada noite, que descia indefinidamente aos abismos sem luz, além de toda profundeza conhecida, sem esperanças de poder voltar a subir. E, mesmo após o despertar, persistia uma tristeza, uma desesperança vizinha do aniquilamento. Fenômeno análogo a alguns dos que se produzem na embriaguez do haxixe, o sentido do espaço e, mais tarde, o sentido da duração do tempo foram singularmente afetados."

A fuga da embriaguez, por outro lado, a busca por absorver o que é a realidade em si com suas imponderáveis possibilidades factuais fatalmente causará um impacto sensorial a quem se dedicar a esta empresa. A realidade também vai causar letargia em virtude de sua crueza; o espanto frente aos incompreensíveis, incontroláveis e desoladores acontecimentos reais vai minar a tranquilidade, por ser impossível ter ciência de tudo isso e não ser afetado de todas as formas. O espanto se transformará em angústia, por causa do sentimento de impotência para interferir nos eventos; a angústia se tornará desesperança, que, por fim, levará a um estado de letargia e alheamento, um desejo de nunca ter sido exposto a tamanho martírio.

Como ensinou sabiamente Aristóteles, devemos buscar o caminho do meio, da virtude. Os extremos são danosos. Busquemos parcimônia em quaisquer aspectos da vida para que alcancemos serenidade.

(livro onde constam as citações: Paraísos Artificiais, Charles Baudelaire)