A diferença moral entre escritores profissionais e escritores amadores, uma tese lispectoriana

"Clarice Lispector, certa vez, para uma entrevista à TV Cultura em 1977, disse: 'Eu nunca assumi, eu não sou uma profissional. Só escrevo quando eu quero. Eu sou amadora e faço questão de continuar a ser amadora. Profissional é aquele que tem a obrigação consigo mesmo... obrigação consigo mesmo de escrever. Ou então com o outro, em relação com o outro. Agora, eu faço questão de não ser profissional, para manter a minha liberdade'. Clarice fez essa afirmação quando já era uma escritora consagrada, com décadas dedicadas à literatura." (1)

Essa declaração de Clarice Lispector coloca os adjetivos "profissional" e "amador", quando para a qualificação de um escritor, em significados assaz diferentes dos normalmente associados a eles: um, o de "profissional", como o de alguém experiente em uma atividade qualquer, e o outro, o de "amador", como o de alguém iniciante e sem experiência nessa atividade. Os significados para Clarice, quando na adjetivação de um escritor, são outros: para um (o de escritor profissional), é o de alguém preso a uma atividade obrigatória, que o sustenta materialmente, e, para o outro (o de escritor amador), é o de alguém livre nessa atividade, a qual não lhe é obrigatória porque não depende materialmente dela.

Assim, o escritor profissional é o que faz da escrita a sua profissão, o seu ganha-pão, como os jornalistas, os colunistas de jornal, os roteiristas de TV e cinema, os "ghostwriters" e os escritores consagrados que se distinguiram seja pela própria capacidade literária de escrever ficção ou por outra atividade qualquer na qual se destacaram (filosofia, física, medicina, etc.), que escrevem por encomenda a jornais, revistas e editoras. São obrigados a escrever, mesmo sem nenhuma inspiração para isso, o que faz com que possam fazê-lo de má vontade e ineficientemente.

Nos novos significados, carimbados pela insuspeita e aclamada escritora e atribuídos apenas a uma classe específica de trabalhadores (os escritores), escritor profissional é o escritor assalariado, dependente da sua atividade, marcado pelo crivo da necessidade, da urgência permanente de criar uma obra para satisfazer seu contratante e seu leitor, enquanto o escritor amador é o escritor livre de quaisquer dessas amarras psicológicas às quais está preso o escritor profissional. O escritor amador escreve o que quer que lhe dê na telha, quando quer, como quer e onde quer, colocando ideias próprias sem nenhum objetivo de agradar sicrano ou beltrano.

Para resumir objetivamente, sem firulas, podemos classificar os escritores em escritores "assalariados" (os profissionais) e escritores "livres" (os amadores), invertendo totalmente o valor hierárquico/moral que se atribui normalmente a esses dois tipos de atividade literária (a profissional e a amadora).

Nesse sentido, todos nós, os escritores aqui do Recanto, supostamente amadores (pois nada ganhamos em escrever aqui), podemos comemorar essa nossa superioridade moral sobre os escritores profissionais? Como sugeriu Lispector, não estamos presos nem a nós mesmos (ao nosso egoísmo vaidoso) nem a outros agentes igualmente coercitivos. Exercemos nossa arte livremente, sem precisarmos nos preocupar, como os escritores assalariados, em desagradar os que vão nos pagar pelo nosso talento (empresários das letras e leitores).

Mas calma lá com o andor, porque aqui há que se separar o joio do trigo.

Em primeiro lugar, há que se considerar que o escritor amador comum, que em geral não se prima por uma excelência literária como a de uma Clarice Lispector (pois isso não lhe é exigido), não se vê premido por essa excelência exigida do escritor profissional, que se verá cobrado pelo escrutínio de seu contratante e de seu público. A única pressão a que se permitem os amadores competentes do naipe de Clarice é a exigência própria e interior de darem o melhor de si mesmos em qualquer atividade a que se dediquem (2), mesmo nas extraliterárias, independente da recompensa ou desagrado que elas provocarem [fazem-no no único imperativo categórico do "dever", em oposição ao imperativo hipotético da "reciprocidade" - ganhar algo por um esforço - conceitos sobre a moral imortalizados pelo filósofo alemão Immanuel Kant (3)].

Em segundo lugar, talvez seja difícil, embora não impossível, achar aqui uma Clarice Lispector em potencial. Pois tenho reparado, nas minhas leituras aqui e minha humilde opinião, que alguns, bem poucos, escrevem muito bem, desenvolvendo argumentos bem elaborados, podendo ser classificados como amadores do naipe de Clarice. A grande maioria, porém, não é composta de amadores deste tipo, antes é de amadores "amadores" mesmo, da forma como o senso comum qualifica a palavra "amador". Escrevem textos grosseiros, com erros de gramática e ortografia primários, revelando desleixo e total despreocupação com a boa prática literária (geralmente são os jovens, o que explica muita coisa, mas há também muitos adultos).

A propósito, vi esse desleixo num empresário rico da minha cidade, um escritor amador "amador" que se considera "profissional", suposto mecenas da literatura, que escreveu vários livros. Ao ler um deles, um texto onde conta episódios da sua vida em que se autoglorifica como um empresário "self-made man", notei a sua preocupação constante em se elevar acima dos mortais comuns que supostamente ajudou, os poetas humildes que iam à sua imponente livraria pedir a sua benção. Mas o que me espantou mesmo, além do conteúdo arrogante, foi o texto muito tosco na forma em si, com muitos erros de português, que podiam ter sido corrigidos por um bom revisor. Antes de eu ler o livro, numa conversa com ele, que foi na qual ele me convenceu a comprar seu livro, ao perguntar-lhe sobre a sua formação acadêmica, ele me revelou ter feito, quando jovem, apenas um curso de desenho industrial com o qual ingressara numa metalúrgica. Não me disse, porém, em até que nível chegara em sua formação escolar. Ao omiti-lo, revelando uma vergonha oculta (sem sentido, já que podia ser um competente autodidata), mostrou que não desenvolvera uma carreira acadêmica, o que explicava muito a precariedade formal do seu livro. Mas o seu livro deu-me, pelo menos, uma lição: a de "como não escrever um livro".

Por outro lado, também não quero dizer que todos os escritores "assalariados", achacados pelos seus contratantes, sejam incompetentes ou materialmente imorais (que só pensem no dinheiro que irão ganhar com seu talento). Por exigências profissionais, escrevem bem, treinados que foram por cursos e muitas leituras. Por exemplo, existem excelentes colunistas de jornais ou revistas, contratados por serem justamente oriundos da boa literatura ou de outras profissões em que se destacaram. Mas são poucos também, como são poucos os amadores competentes do Recanto que se possam dizer amadores do naipe de Clarice Lispector.

Concluindo tudo, da mesma forma como não há razão para que os escritores aqui do Recanto invejem ou ambicionem se tornar os escritores profissionais de jornais e editoras, também não há razão para que estes escritores profissionais se sintam "superiores" aos do Recanto, já que pode haver aqui uma Clarice Lispector em potencial superior a eles, o que, portanto, na visão lispectoriana, os torna moralmente inferiores aos amadores competentes.

(1) Loureiro, Juliano. "Quero escrever um livro. E agora?". (Disponível em ebook no site www.livrobingo.com.br, consultado em 01/06/2024)

(2) Essa virtude foi ressaltada no artigo "Dê o seu melhor" e na crônica "A última dança do cisne", de minha autoria aqui no Recanto.

(3) Kant, I. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução de António Pinto de Carvalho. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1964. (p. 104-105)

Paulo Tadao Nagata
Enviado por Paulo Tadao Nagata em 04/06/2024
Reeditado em 30/10/2024
Código do texto: T8078074
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