PESADELOS DA GAZEADORA

Uma das lembranças mais fortes que ela tem, da infância, foi de quando saiu pela manhã de um dia qualquer, saiu sem destino, e no caminho encontrou algumas crianças e lá ficou a manhã toda. Chegou o horário do almoço e todas as crianças já estavam indo para as suas casas. Continuou a caminhada e deu-se conta de que não tinha para aonde ir. Retornou para "casa" e todos estavam à sua procura. Apanhou!

Nesse dia em questão, ela deveria ter ido para a escola, lá era um bom lugar, mas nesse dia o plano era fugir. E quando se deu conta de que não tinha coragem de seguir com o plano, a primeira pessoa que olhou ao retornar foi a pessoa de quem ela queria fugir. Apanhou tanto que o tom da pele mudou para roxo e ainda saiu com a boca quebrada. A sua "madrinha", ao bater, gritava e batia e batia. Tinha tanta gente na casa que ela não se importou e ninguém ajudou. Ninguém se manifestou. Ela ainda lembra dos olhos a encarando e os sussurros ''Besta égua, é isso que dá a gazear aula''. Apanhou tanto, que dava para ouvir os seus gritos no final da rua.

"Ela, ao terminar de bater-me, disse: — Aqui não quero, mas ela, vou devolver!"

A única coisa que pensou ao ouvi-la foi que o plano tinha dado certo. Sabem o motivo da tentativa de fuga? Pois é, nunca a perguntaram. Uma das coisas que mais ouvia antes e depois da sua devolução era GAZEADORA e ouviu isso por um bom tempo. O engraçado é que, apesar de carregar esse apelido, ela nunca realmente fez isso. Mas não importava, o seu plano tinha dado certo. O motivo em particular era que, em alguns dias, ao dormir, ela tinha alguns pesadelos:

"ELE beijava-me, no outro ELE tocava-me e em outros ELE tirava a minha roupa. Mesmo sendo criança, eu sabia ter algo estranho ali. Houve um dia em que fiquei sozinha com ELE, e nesse dia percebi que não eram simples pesadelos, eram coisas que eu realmente vivia."

" Um dia, ELE tirou toda a minha roupa e ficou lá me encarando por um bom tempo. E depois disso, era algo rotineiro, por mais que eu me escondesse ou dizia querer ir com alguém para algum outro local, ELE sempre conseguia de alguma forma que eu ficasse sozinha. Uns dias foram beijos, outros toques, roupas retiradas e por fim ele estava por cima de mim. Depois disso, não parou, eu ficava totalmente imóvel, nojo e culpa tomavam conta de mim."

"Lembro um dia em particular em que tive a chance de ajuda, esse dia em que eu estava na rede e ELE chegou, pelado, e deitou. Alguém nesse dia entrou no quarto, pegou o que deveria e saiu. Como pode outro adulto ver aquela situação e achar normal? Viu que ele estava na rede comigo no meio da tarde com um lençol por cima e não achou aquilo estranho, será que eu não merecia nenhuma ajuda? Na minha cabeça, eu gritava: Ajuda-me! Tira-me daqui! Socorro! Por favor! Mas nada adiantou, ninguém ouviu e ele continuou e dizia: — Só eu que cuido de você!"

"Eu tinha tanto medo. Aquilo não era cuidado, não era amor e mesmo que todas às vezes eu me escondia ou saia para a casa dos vizinhos, ele sempre me achava, por isso pensei nessa fuga, nessa saída. E mesmo depois de todos esses dias, todos esses anos, ninguém nunca perguntou o porquê fiz aquilo, porque eu saí. Sei que assustei a todos saindo daquela forma, mas parecia que ninguém se importava comigo."

"Fui devolvida, fui para outra "madrinha". Tudo ótimo por alguns dias. Encontrei outro ELE a história repetiu-se... os mesmos passos... a mesma situação. Ela separou-se e foi morar em outro lugar com outra pessoa. E acreditem, eu encontrei outro ELE. Pensei várias vezes em fugir, mas pensava que na rua poderia ser pior, afinal, o lugar em que eu deveria sentir-me segura e acolhida era o lugar onde eu sofria e sempre pensava que lá fora deveria ser pior."

"Dizem que sou paranoica, em algumas situações, e desligada em outras, mas quando observo crianças muito próximas de alguns adultos, de alguma forma acabo perguntando se algo a está incomodando e, infelizmente, já ouvi um, sim, eu já consegui ajudar. Dizem que a segurança de uma criança é apenas responsabilidade dos pais, mas na minha cabeça não é. São de todos, se as pessoas que me secaram reparassem na minha situação, eu não teria sido violada várias e várias vezes. "

"Um dia voltei para onde eu nunca deveria ter saído, para os braços da minha mãe. Eu não a culpo. Ela era muito jovem e morava na casa dos outros de favor, não conheço o meu pai, e de alguma forma penso que sou fruto de algo que aconteceu com ela da mesma forma que acontecia comigo e acontece na vida de tantas outras. Sigo a minha vida com ela do meu lado. Nunca, mas deparei-me com ELES, e sempre observo para aqueles que podem encontrá-los. Mesmo assim, quando estou sozinha, nunca deixei de trancar qualquer porta ou janela, sempre verificando 3 ou 4 vezes para sentir a segurança de que ninguém poderá machucar-me. Às vezes à noite ainda escuto alguns passos. Ainda tenho medo e estou lutando. Mas juntas somos fortes!"

"O incrível é que até hoje, ninguém sabia o que acontecia comigo, ninguém. Mesmo eu evitando a companhia de certos ou todos os meus parentes. Ninguém achava isso estranho? Ainda lembro da infância escondida e atormentada. Na minha adolescência, passava boa parte em casa, para falar a verdade, a grande parte. Depois de um tempo, fui cercada de pessoas boas, sim, mas nada fazia com que eu me assegurasse ou confiasse totalmente neles. Eu ficava e fico por aí de olho, afinal, onde vocês estavam quando eu precisei? Por que não me ajudaram quando tive que ouvir coisas que as crianças não deveriam ouvir? Onde estavam quando eu dormia debaixo da cama com medo do monstro no meio da noite? Será que ninguém nunca percebeu?"

"Eu encontrei uma boa pessoa. Mas nunca fui capaz de contar essa parte da minha história, um dia conto para esse diferente ELE, a história ainda me entristece e apavora. A lembrança da insegurança de quando ficava com alguém sozinha em casa é apavorante até hoje, lembro com tanta clareza de certos detalhes, das noites que não dormia, dos banhos demorados, do choro, do xixi na cama, as roupas, o cheiro, a ânsia, dos vômitos de tudo. Era um nojo e raiva de mim mesma."

'' Nunca deixo de dúvida de algo. Pode até parecer exagero, sabe, mas quando ouço uma criança dizendo que tem medo do escuro por conta do bicho-papão, sempre tento ajudar, sempre me interesso, mas do que o normal em saber o porquê, sempre tento compreender da melhor forma. Lembre-se de que às vezes o bicho-papão pode não existir para você, mas para uma criança o medo pode ser real. Ajude!

Em homenagem a todos que de alguma forma foram violados.

Em especial...

Com carinho,

Keila Salvatore
Enviado por Keila Salvatore em 27/05/2024
Reeditado em 26/06/2024
Código do texto: T8072846
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