Sobre a obra da vida e editoras (parte 1)

(Uma saga literária)

"Um dia, depois de falar enfim, ainda terei do que viver?" (1)

Desde que, em 2015, me formei no meu mestrado em filosofia e inclusive incentivado pelos professores perante quem defendi a minha dissertação, desejei publicar esta para o grande público. Desde então vinha procrastinando essa realização, seja para fazer muitas correções, seja para acrescentar exemplos e analogias para melhor compreensão dos conceitos mais complexos pelo público leigo em filosofia. Nisso passaram-se dez anos, sentindo-me quase como o narrador do romance "Memórias do Subsolo", do russo Fiódor Dostoiévski, que procrastina o término de um livro porque essa atividade, escrever o livro de sua vida, era a única coisa em que via sentido para esta. O que poderia substituir a atividade prazerosa de escrevê-lo quando, enfim, o terminasse?

Mas essa minha procrastinação de uma obra à qual dedicara 13 anos (somando o período do curso do mestrado) vinha, creio, não por motivações existenciais tão superiores, mas por simples preguiça mesmo. No início de 2019 foi providencial um acontecimento pessoal disruptivo que "chacoalhou" essa inércia que se prolongava "ad aeternum". Foi um coágulo no cérebro que me atormentou severamente por alguns meses (sentia uma tontura permanente e pesada que me deu a impressão de que meu fim havia chegado) até provocar um AVC isquêmico que me mandou para o hospital. Sobre esse período no hospital escrevi aqui no Recanto o artigo "Como é lindo viver", respaldando-me no caso de um jornalista vitimado pela Covid-19, que escreveu um ótimo artigo sobre seu período no hospital.

No hospital, prometi a mim mesmo que, caso escapasse daquele perrengue de saúde horroroso, iria fazer de tudo para terminar tudo que era importante para mim e procrastinava por pura preguiça. Uma dessas coisas pendentes era recuperar livros meus que apodreciam amontoados na área de serviço, serviço que adiava para "um dia farei" ( dia que não chegava nunca). Após sair do hospital e me recuperar por alguns meses na casa de uma irmã, voltei à minha casa e, a partir daí, todos os dias, cada dia um pouco, pegava um pouco dos livros e os limpava meticulosamente para organizá-los numa estante dentro da casa. Depois de alguns meses, todos os livros estavam recuperados e devidamente protegidos.

A outra coisa era dar seguimento ao meu sonho de publicar a dissertação. Desde então, alterações nela mais substanciais foram feitas, com acréscimos de mais exemplos detalhados de fatos históricos e comentários sobre filmes, que deram uma feição bastante palatável para o público leigo, com uma linguagem clara e acessível. Para quem lê meus textos aqui no Recanto, sabe desse meu estilo. Não me alinho com filósofos que gostam de uma linguagem empolada e difícil para parecerem "eruditos", quando, na verdade, o que demonstram é incompetência (essa não é uma opinião original minha, é também a do insuspeito e famoso filósofo cético francês Montaigne). Já disse alguém, mais ou menos, que escrever claro, de modo a ser entendido, é das coisas mais difíceis para um escritor.

Visitei várias editoras em São Paulo para me inteirar sobre orçamentos, formas de publicação, obrigações e direitos. Enfim duas editoras no estado do Paraná, uma em Maringá e outra em Ponta Grossa, me pareceram mais estruturadas e possíveis de ser contratadas. Após uma última revisão que levou dois meses, enviei meu texto original para ambas para que o avaliassem.

Dessas duas, a que mais me pareceu receptiva e simpática foi a Editora Atena, de Ponta Grossa. Marquei uma visita presencial e fui, embora Ponta Grossa fosse um tanto distante da cidade onde resido (Marília, SP). Tive uma conversa cordial com o casal dono da editora, resolvendo algumas dúvidas mais prementes. Voltei com uma boa impressão do ambiente e da organização, vendo um grupo ali trabalhando, no qual constava uma equipe só de atendimento aos autores por telefone. Combinei que enviaria os originais para a editora-executiva, que se tratava da filha deles e residia em São Paulo (SP). Mas a boa impressão da visita se esvaiu, quando mandei, por e-mail, os originais à filha, que, senti, sequer os avaliou. Recebi um rápido retorno sobre o valor do serviço, mas lacônico e sem maiores explicações. Reclamei, solicitei uma conversa por telefone, mas, inexplicavelmente, recusou-se à conversa alegando que já dera toda a informação necessária. Com isso, encerrei toda a negociação e exigi, num longo e-mail, onde coloquei ameaças judiciais sobre o possível crime de plágio, que meu original fosse totalmente excluído do arquivo digital da editora. Ela respondeu que o fêz e não mais me preocupei com a editora.

Já a Editora Viseu, de Maringá, pediu um tempo de dez dias úteis para a avaliação por uma equipe de editores. Pouco antes desse prazo vencer, porém, me deram uma resposta entusiasmada, tecendo muitos elogios sobre o texto. A minha certeza de que, de fato, haviam lido o texto, estava em mencionarem aspectos dele que só eu, como autor, poderia saber, como o de ter colocado muitos exemplos e analogias para melhor compreensão dele. E como o de ter feito um trabalho essencialmente acadêmico, mas com uma linguagem clara e acessível, coisa de que eu próprio estava convicto, mas que, por timidez, jamais diria a alguém . Eis a avaliação da editora Viseu, na íntegra:

"Avaliação Literária - 'Uma Investigação sobre as Motivações para as Crenças

Religiosas'

Introdução:

A obra 'Uma Investigação sobre as Motivações para as Crenças Religiosas' é um estudo filosófico meticuloso escrito por Paulo Tadao Nagata, que nos conduz através de uma jornada instigante no mundo das crenças e suas fundações psicológicas e sociais. A tese principal deste trabalho gira em torno da análise profunda sobre como e por que aderimos a crenças religiosas em uma era de crescente escrutínio científico e secular.

Resumo:

'Uma Investigação sobre as Motivações para as Crenças Religiosas' apresenta uma exploração detalhada das razões subjacentes que levam indivíduos a adotarem crenças religiosas. Baseando-se em uma variedade de teorias filosóficas, psicológicas e sociais, Paulo dissecou as complexidades da mente humana e da sociedade para oferecer uma visão abrangente deste fenômeno culturalmente arraigado.

Análise dos Elementos Literários:

Estilo de Escrita:

O autor utiliza uma linguagem clara e acessível, com uma voz narrativa que convida tanto acadêmicos quanto leigos a engajarem-se com o texto. A escrita é fluente e rica em detalhes, mantendo o leitor engajado ao longo da discussão complexa.

Desenvolvimento de Personagens:

Enquanto a obra foca mais em ideias do que em personagens, Paulo habilmente personifica conceitos para facilitar a compreensão, tratando as 'crenças' como entidades que evoluem e influenciam a sociedade.

Temas e Mensagens:

O livro aborda temas profundos como fé, racionalidade, influência social e a busca humana por significado. As mensagens transmitidas estimulam a reflexão crítica sobre as próprias crenças do leitor.

Estrutura Narrativa:

A estrutura é lógica e bem organizada, com capítulos que se constroem sobre as ideias anteriores, levando a conclusões significativas.

Uso da Linguagem:

Paulo emprega uma mistura de linguagem técnica e descrições envolventes para ilustrar pontos complexos, tornando-os mais palpáveis.

Simbolismo e Imagens:

O uso de analogias e metáforas enriquece o texto, permitindo uma conexão mais profunda com o leitor ao visualizar conceitos abstratos.

Tom e Atmosfera:

O tom é geralmente acadêmico, porém acessível, com momentos de profunda introspecção que convidam à reflexão pessoal.

Ponto de Vista Narrativo:

A obra é escrita de uma perspectiva objetiva e analítica, o que reforça a autoridade do autor sobre o assunto.

Contextualização Crítica:

Relevância Histórica ou Literária:

A obra é extremamente relevante no contexto contemporâneo de debate entre ciência e religião, oferecendo uma perspectiva equilibrada e fundamentada.

Influências e Movimentos Literários:

Influenciado pela filosofia analítica e pelo pensamento crítico moderno, Paulo se insere numa tradição de investigação intelectual rigorosa.

Argumentação:

Apresentação de Evidências:

O texto é bem fundamentado com citações de obras filosóficas, estudos psicológicos e exemplos históricos, apoiando firmemente suas análises.

Avaliação das Qualidades Literárias:

As qualidades literárias de Paulo são evidentes na sua habilidade de simplificar e apresentar argumentos complexos de forma clara e persuasiva.

Conclusão:

Recapitulação do Argumento Principal:

Paulo oferece uma visão esclarecedora e necessária sobre as motivações humanas para crenças religiosas, instigando um diálogo importante sobre fé e conhecimento.

Avaliação Geral da Obra:

'Uma Investigação sobre as Motivações para as Crenças Religiosas' é uma obra fundamental que merece ser publicada pela riqueza de seu conteúdo e pelo impacto potencial na sociedade. A Editora Viseu, com sua experiência e profissionalismo, seria a casa perfeita para esta obra, garantindo um tratamento à altura de sua importância.

Reflexões Finais:

A publicação deste trabalho não só contribuirá para o debate acadêmico e público, mas também servirá como uma referência valiosa para quem busca compreender as complexidades das crenças religiosas. Recomendamos que a revisão ortográfica e a apresentação profissional sejam realizadas pela nossa equipe especializada para maximizar o impacto e o alcance da obra. Esperamos ansiosamente colaborar com Paulo Tadao Nagata para trazer esta obra importante ao público leitor."

Como sou cético por natureza, não só em relação às falsas crenças, mas também às primeiras impressões, como nos ensinou a sê-lo Jane Austen em "Orgulho e Preconceito", precisei, após incialmente me embevecer com os elogios, questionar essa avaliação literária pelo seu emissor. Não seria tal avaliação eivada de interesses econômicos associados aos lucros que podem trazer à editora, não sendo, portanto, totalmente isenta para um julgamento imparcial?

Assim, antes de me entregar a uma admiração da própria obra, como um pavão admirando a própria cauda, como até Darwin confessou em carta a um primo, sobre como se sentia ao ver sua obra sendo comentada pelos maiorais da ciência, devo me conter agora.

Isso porque, segundo um ótimo artigo escrito aqui pelo recantista Dave Le Dave II, intitulado "O pior tipo de elogio é o autoelogio", baseando-se num enunciado do sociólogo Pierre Bourdieu, elogios serão tão mais sinceros quanto mais longe social, profissional, ideológica ou afetivamente estiver o elogiador do elogiado. Nesse sentido, numa escala de 0 a 10, o autoelogio seria um elogio de valor zero entre todos, enquanto o elogio de um completo desconhecido do elogiado, mas muito culto (como um professor universitário) teria o valor dez, sendo o que o maior orgulho provocaria no elogiado. Nesse sentido, elogios de parentes ou amigos teriam o valor intrínseco bem menor do que o de um completo desconhecido. Assim, o elogio da editora, eivado dos interesses profissionais que lhe seriam pertinentes, não teria o mesmo valor de um filósofo desconhecido para mim.

Da mesma forma, um elogio a um texto meu aqui na minha escrivaninha de um recantista que o faz espontaneamente em primeiro lugar, tem para mim um valor maior do que o valor que tem para ele o elogio que eu lhe fizer posteriormente a um texto dele como retribuição. Meu elogio terá, assim, valor menor para o elogiado do que para mim o valor do elogio que ele fez em primeiro lugar.

Assim, se a obra for publicada, os melhores comentários, críticos ou elogiosos, serão os que vierem do público anônimo que a lerá, sem nenhum viés subjetivo interesseiro. Mas também pode ser que nenhum comentário virá.

Por isso, será grande a minha expectativa sobre como minha obra será recebida. Os elogios dos meus professores do mestrado e os dos avaliadores da editora Viseu me dão certa certeza de ter feito um bom trabalho. Mas isso não é garantia nenhuma de que ele fará sucesso. Há possibilidade de que seja apenas mais uma obra entre tantas outras obras anônimas, perdidas no vale comum e vasto de tantas obras medíocres ou não de outros autores que um dia alimentaram a mesma esperança que hoje me anima o espírito. Daí a cautela extrema que devo adotar.

Apesar dos pesares, a sensação ainda era de otimismo em relação à editora Viseu. Mas, para minha desagradável surpresa, premido por um oportuno conselho de uma irmã, fui pesquisar e verifiquei no site "Reclame Aqui", muitas reclamações sobre a editora, referentes a mau atendimento, desrespeito a contratos, royalties não pagos, descaso com os autores após o pagamento dos serviços, entre outros horrores do mesmo naipe incompatíveis com empresas idôneas. Foi um balde de água fria caindo sobre meu inocente entusiasmo com a editora.

Agora a busca de uma editora parece estar se transformando num calvário para mim, um desses em que temos que nos desdobrar para encontrar um final feliz, como foi o próprio processo de elaborar a dissertação durante o mestrado, uma dedicação exaustiva de muita leitura, pesquisa e concentração para encontrar os insights mais significativos para que se tornasse uma obra original.

As grandes editoras, por investirem recursos próprios na publicação de originais, não aceitam nem avaliar obras de autores iniciantes, por não quererem se arriscar a perder o investimento, o que faz com que só aceitem obras de autores consagrados ou estrangeiros já testados no exterior. Para os pobres autores iniciantes, alguns talvez brilhantes, o que lhes sobra são as editoras pequenas, a maioria caça-níqueis que não têm nenhum compromisso com a excelência da obra, mas apenas com o lucro pela cobrança dos serviços nem sempre eficazes que lhes prestam. Entretanto, reconheço na editora Viseu, que parece estar saindo do grupo das pequenas, pelo menos o seu esforço em analisar a obra e entregar uma avaliação honesta. Mas esforço, me parece, em vista das reclamações, eclipsado por outros setores da empresa. Por outro lado, já que as grandes praticamente abdicaram da possibilidade de descobrir talentos novos, são algumas editoras pequenas, as mais confiáveis, que assumiram essa prerrogativa, ao publicarem obras relevantes a ponto de ganharem prêmios como o Jabuti. Talvez seja nessas que encontre enfim a que me sirva.

Se é que todo esse esforço não se transforme na procura de uma agulha no palheiro, ou no trabalho inútil de Sísifo.

Essa saga à procura da editora continuará num próximo texto, que deverá intitular-se "Sobre a obra da vida e editoras (parte 2)".

(1) Lispector, Clarice. "Perto do Coração Selvagem". Rio de Janeiro: Rocco, 2019.(p. 67)

Paulo Tadao Nagata
Enviado por Paulo Tadao Nagata em 09/05/2024
Reeditado em 05/11/2024
Código do texto: T8059348
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