O amor que dói

Eu era menos que fagulha. Era a brasa queimada, fria. Era só um amontoado de restos queimados. Sem rastros de vida recente por perto. Tinha um peito que não mais batia nada dentro. Passava os dias, mas só pra ver o sol nascer e se pôr no canto da janela suja do meu quarto.

Tinha fome, mas só o suficiente para permanecer inerte. Sabe, eu me lembro das sensações, desesperos mudos. Um dia, inesperadamente, algo acordou. Uma criatura quase viva colocou vagarosamente os pés fora da cama, se arrastou até a sala, e viu, por horas a fio, um sol que nascia, crescia, brilhava, que era branco, amarelo, azul, roxo, laranja. Doía a vista, mas era lindo. A pele parecia derreter só com aquela imagem. Depois de rios se esvaírem de um rosto quase morno, a única opção era caminhar, mas o gelo endureceu os músculos por tantos anos, que cada passo beirava o insuportável, mas minha alma cismou em tentar. O frio da brasa apagada não servia mais. Era sujo demais, e eu, pura demais.

Tropeçando, caindo, desistindo, mas levantando de novo. E de novo. E quando não havia mais onde segurar, e a queda era certa, vieram mãos seguras e firmes de alguém com rosto calmo e doce. Alguém que me carregou até perto do fogo, me ajudou a ajustar a visão, me lembrou de ser fogueira de novo. Rodopiava ao redor do fogo como se fossem velhos conhecidos, com uma confiança que eu não ousei questionar.

Sempre que eu me retraia, alguém vinha, cantava baixinho até eu seguir a canção. Florescia o caminho antes de eu passar, regava com cuidado e me fazia ser a luz que toda aquela vida precisava para crescer. Aos poucos eu amei cada um daqueles momentos, me apeguei a cada um deles. Abracei todos cada vez mais forte. Me fiz fogueira, e ardia, queimava, tinha chamas tão altas que outros poderiam invejar, mas só tinha um alguém que realmente poderia enxergar aquela luz, a minha luz.

Então, quando nada mais parecia me assombrar, quando tudo era vida de novo, e minhas chamas queimavam mais altas que qualquer outra, e nem lembranças do passado parecia haver, alguém se queimou. Doeu ver aquela alma correr, fugir tão desesperadamente. Arrancou de mim metade da falsa paz que um sorriso me trazia, me testou ao limite para aprender a queimar sozinha. Me deixou metade da paz cheia esperança vazia.

Mas solidão também é lenha. Lembranças também viram combustível. Palavras vazias ressoam tantas vezes que nada mais consegue permanecer tão puro. Corações partidos também queimam, mas as chamas são manchadas de desgosto.

Ainda caminho, mas agora admiro a Lua, que em sua beleza solitária espalha esperança e carinho, mas sem jamais deixar-se esquecer que seres únicos, peculiares, sempre caminham sozinhos. Sempre brilham invejavelmente, mas um brilho de partida, uma luz de saudade.

Talvez um dia eu encontre o rastro que sua perda me deixou, e quem sabe agora, que eu não mais queimo tão intensamente, você talvez não se assuste. Talvez um dia seja capaz de aceitar minhas mãos quando os anos te fizerem esquecer o que é viver e seu coração se parta tantas vezes que pareça ter virado brasa fria. Talvez se esqueça de uma vez de ser só lembrança apagada pelo vento.

Gabriela Lourenço
Enviado por Gabriela Lourenço em 08/04/2024
Código do texto: T8037528
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