O único amor que não dói é o amor próprio

Eu seguia normalmente minha rotina. Acordei atrasada mais uma vez, e, mesmo assim, coloquei o despertador para tocar 5 minutos mais tarde. Finalmente me levantei, e, mesmo atrasada, me sentei e comi calmamente. Mesmo atrasada, tomei banho e ainda lavei o cabelo. Cheguei obviamente atrasada no trabalho, mas mesmo assim tive a paciência de esperar pelo elevador apertando apenas uma vez na botoeira.

Meu andar era o quinto. Meu andar é sempre o quinto. Eu encostei a cabeça no vidro e admirei a falta de paisagem que havia ali. Foi então que aconteceu, quase uma cena clichê de filme de terror: o elevador parou antes do que minha consciência já havia se adaptado. Era o terceiro andar. Alguém chamou o elevador, mas quando a porta se abriu, não havia ninguém. Ninguém entrou, ninguém saiu. A pessoa já havia encontrado outra carona, mas um som, uma frase de um alguém desconhecido, isso entrou no elevador comigo. Subi os próximos dois andares com aquela sensação desconfortável de quem só queria aqueles últimos segundos sozinha, mas uma figura estranha interrompera aquele instante, entrara no elevador e não parava de me encarar. Parecia encher todo o espaço, me deixou apertada e fez o resto do caminho demorar mais que percurso anterior.

O único amor que não dói é o amor próprio. Pronto. Uma sentença mais cruel não haveria de existir para corroer minha subjetividade naqueles últimos instantes presa numa caixa de metal.

Que grande desfeita há que se passar para vilanizar tantas e outras formas de amar? Não foi a curiosidade de saber quais ilusões alguém sem rosto precisou desmascarar para chegar a uma afirmação tão imperial que me prendeu nas estranhas pontes que ligavam cada uma daquelas palavras. Mas o que foi então? Voava ao meu redor aquela ideia. Ecoando bem baixinho, quase sussurrando: o único amor que não dói é o amor próprio. Torturava tanto que deixei entrar, fazer um ninho emaranhado com todos os sentidos e fervulhas de mim. Por que havia o destino de inventar estas estranhas coincidências? Por que havia de preparar todo este cenário macabro para que sozinha precisasse ouvir aquela frase desconexa de contextos?

Devagarinho eu pensei em cada um dos meus amores. Aqueles já bem enterrados, que agora só serviam de adubo pra novos amores; aqueles bem recentes, que nem sei ainda como suspirar; aqueles já bem antigos, que transcendem a minha existência; até mesmo os banais, que nem amor não sei se chego a sentir. Tentei achar o que cada um dispunha pra fazer tanto sofrer quanto aquela dita cuja frase prometia. Todos tinham essa fome de mim, essa necessidade tão exacerbada de me obrigar a ser presente. Parece exagero, mas todo amor, pra ser real, precisa de um pedaço nosso; disso sabem bem os poetas, que tão se entregam que as vezes não se sobram mais.

Todos os meus amores tinham um cuidado, uma lágrima, uma caricia, uma tristeza, um riso e um punhado de incertezas. Mas o que estava por trás de tudo isso? O que é que, afinal, tem esses amores que tão ferozmente mata todos os poetas? Tão algozes, me feriam só de abrir o pensamento para tentar alcançar tal compreensão. Neste momento minha agonia cresceu tanto que eu mal suportava a ansiedade daquela resposta que parecia tão certa e clara, mas que eu custava enxergar.

Foi assim, nessa minha dorzinha cercada de tamanhas sutilezas de meu eu que entendi tudo. Minhas lembranças de amor feriam a mim; sorriam pra mim; cantavam sobre dias de domingo ensolarados no parque, mas só eu ouvia a canção. Era bom lembrar, mas lembrar é dentro de mim, assim como recordar machucava um cantinho só meu, invisível aos outros. Era assim porque todos eles me tinham em pedacinhos espalhados. Todos eles só tinham a mim de conexão. E a minha conclusão foi tão ou mais cruel que a primeira frase:

Todos os amores tinham em comum o amor próprio.

O incomodo dos outros amores, a dor de todos eles, nada mais é que a dor do próprio amor pedindo pra ser protegido, acalentado, resguardado, preservado acima de tudo. Todos os outros amores doem porque o amor próprio pulsa forte demais, exige mais que todos os outros e pega de mim mais do que eu poderia compreender. Todos os sacrifícios dos outros amores sacrificam parte do que é próprio, parte do que era meu inteiro.

O único amor que não dói é amor próprio. Óbvio, de tão egoísta, inflige aquelas que deviam ser suas dores nos outros amores. Ele é quem fere, sangra e mata todos. Assassino frio, cruel. Transfere de si a responsabilidade de machucar, porque, afinal, no final só nos resta ele para consolar, para sorrir, para reconstruir, e até mesmo, quem diria, amar de novo. Ai de mim viver sem este rei tão orgulhosamente egoísta.

Gabriela Lourenço
Enviado por Gabriela Lourenço em 05/04/2024
Código do texto: T8035273
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