A menina que aprendeu a voar

Andou discretamente, sentia a ansiedade se misturar a curiosidade. Tocou suas asas quase como se só contornasse ao redor. Sabia que eventualmente teria que saltar, que se fosse correndo seria mais fácil, mas ninguém pula do precipício sem ter tido a visão da queda.

Não sabia se estava preparada, se daria certo ou se tudo era apenas uma alucinação e no final morreria ao atingir o chão. Queria desistir e voltar ao seu domínio, mas não sabia como fazer isso, parecia tarde demais e agora precisava se jogar.

Tocou novamente suas asas, dessa vez com mais força, podia sentir o formato das penas e como se comprimiam embaixo de suas mãos. Faltavam poucos metros para chegar ao ponto do salto. Metros apenas. Já conseguia distinguir a paisagem do outro lado, e sabia em qual ponto devia pousar.

Um dia, depois de toda turbulência cotidiana, sentiu o corpo pesado e preferiu desmarcar os últimos compromissos para ficar em casa e descansar. Dormiu por 3 dias seguidos, fez preocupar todos ao redor.

Um dia acordou, se sentia leve, quase como se o corpo acompanhasse o movimento da brisa que soprava as folhas caídas do outono. Andou tranquilamente até a calçada, e assim continuou, não sabia para onde ia, mas sabia que, quando chegasse, aquele seria o lugar que sempre precisou estar.

Sentia algo diferente, algo leve, mas que pesava sua caminhada. Sentia que crescia na mesma velocidade que sua jornada. Não se assustou ao perceber que agora tinha asas. Não se assustou quando elas começaram a arrastar no chão.

Andou por quase um dia. Viu o precipício e sabia que devia saltar, devia voar pela primeira vez, mas saber disso não tornou a tarefa mais fácil, mas ao mesmo tempo tudo era tão simples que não conseguia parar, não conseguia pensar numa possibilidade em que desistia daquele pulo.

Supôs que faltavam 5 metros antes de se jogar no vazio. Fechou os olhos. Correu.

Mediu errado, faltavam só 3 metros, o chão acabou antes do previsto. Se assustou por 1 segundo e então suas asas se levantaram. Voava. Não se lembrava mais onde havia programado pousar. Voou como Ícaro, mas suas asas não lhe falharam.

Voou sobre um lago, e viu que alguns animais brincavam com ela. Saltavam sobre ela.

Voou sobre a selva, e alguns filhotes tentaram lhe alcançar.

Voou sobre tudo, e tudo lhe correspondia da forma como era possível.

Foi assim que entendeu que suas asas eram sua alma. Era isso que lhe mantinha viva, e não haveria vida sem aquele salto, sem aquela ansiedade, sem a caminhada. Não haveria vida se não estivesse disposta a viver, a se entregar ao seu voo.

Eu a vi voar sobre mim, a vi desenhar o céu dançando como se ninguém estivesse observando. Eu escrevi sobre ela, mas ela continuava sendo muito mais. Contemplei seu auge, e mesmo assim há tanto que não sei. Ela continuará voando, continuará sem saber onde devia pousar porque agora não devia mais pousar, continuará insistindo mesmo quando suas asas se cansarem, e sempre estará mais alto que no instante que acabou de passar. Não sei onde estarei, não sei se ainda escreverei sobre ela, mas quero que fique com esta visão. Quero que se lembre desta criatura livre, verdadeira, fiel a sua existência. Quero que possa voar com ela, assim como eu agora transpasso as nuvens puxada pela ventania deixada por suas asas.

Gabriela Lourenço
Enviado por Gabriela Lourenço em 01/04/2024
Código do texto: T8032428
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