Naufrágio

Hoje eu acordei com o passado sussurrando nos meus ouvidos, me lembrando da primeira vez que me joguei no mar. Lembro que levei poucas coisas, afinal eu só tinha um barco muito pequeno. Levei algo para comer, um caderno e um lápis para anotar algumas lembranças. Só o suficiente para sobreviver e não esquecer.

Com o tempo me acostumei ao mar. Aprendi os caminhos mais calmos e comecei a juntar algumas memórias, que, aos poucos, entulharam no canto do meu barquinho.

Eu já havia estabelecido minha rotina, todos os dias observava o farol onde ficava o porto de minha partida. Não conseguia mais ver o porto, mas o farol estava lá, uma lembrança do que eu considerava segurança. A luz fraca muitas vezes me serviu de guia durante a noite, e me acalentava o coração enquanto eu vasculhava minhas memórias amontoadas em busca de respostas fáceis.

Aquele farol era um lembrete de que eu tinha um caminho para voltar, uma segurança para quem ainda estava aprendendo a velejar. Vivi assim muitos dias. Dias que vi virarem semanas, que por sua vez se transformaram em meses, e logo se passaram anos e eu continuava na minha calmaria.

Já não me preocupava mais com o futuro, era tudo parte da rotina. O balanço do mar me carregava para longe, mas não longe o suficiente para me assustar. Era tudo igual, e eu só precisava seguir o roteiro.

Foi assim até que um dia, eu acabei adormecendo sem me lembrar de fixar âncora em algum lugar. Simplesmente dormi acalentada pelo balanço lento do barco. Descansei despreocupada com os imprevistos, e tive sonhos leves, coloridos, até mesmo cheguei a esquecer que dormia. Dormi assim até que meu barco bateu em uma pedra e aquele movimento me assustou.

Acordei com este susto e por instinto procurei meu farol, mas não havia nada por ali além, da imensidão azul e a pedra onde meu barco colidiu.

Me desesperei, não sabia onde estava. Continuava em águas calmas, mas não sabia onde estava. Em meu desespero fiz um movimento brusco demais para um barquinho tão atulhado de memórias, e num segundo me vi afogando no mar. Meu barco virou, não aguentou o peso de tudo que eu havia acumulado em anos de viagem.

Me vi afundar em águas calmas. Senti o oceano me puxar para o fundo de uma plenitude assustadora. Tentei puxar ar, mas foi o sal da água que entrou queimando meus pulmões. A dor me fez abrir os olhos e mais uma vez o sal me machucou, me cegou.

Tentei desesperadamente nadar, mas eram tantas memórias caindo e afundando ao meu redor que, mesmo em águas calmas, eu não conseguia nadar. Não tinha força para sair daquelas armadilhas que viraram minhas lembranças.

Não conseguia subir para a superfície, e quanto mais lutava, mais afundava, mais me doía e me cansava. Estava frio, me sentia perdida, sozinha. Queria viver, mas não sabia o que fazer caso conseguisse ar. Ouvia minhas memórias ao meu redor, via rostos já quase esquecidos, mas nada nem ninguém que pudesse ou conseguisse me ajudar.

Me entreguei ao mar. Deixei minhas forças me abandonarem, e me vi afundar minha imensidão solitária e exaustiva. Desmaiei. Devo ter passado muito tempo inconsciente, o fato é que quando acordei já não estava mais rodeada de água, apenas sentia a espuma do mar batendo nas pontas dos meus dedos dos pés. Estava caída numa praia. Não reconhecia nada naquele lugar. Não havia nada meu ali. A praia era desconhecida, a areia parecia estranha, e até o farol não era o meu farol. Vinha um vento frio do mar, e em nenhum lugar eu via minhas lembranças.

Me levantei e caminhei com bastante dificuldade, ainda sentia os pulmões queimando, e os olhos ardendo. Caminhei por um tempo que me pareceu muito mais longo do que acredito que realmente tenha sido. Sentia a areia desmanchando nos meus pés, e fui assim, lentamente, até encontrar o porto daquele lugar. Para minha surpresa, estava abarrotado de pessoas. Viajantes, moradores, acidentados. Todos se esbarrando e acotovelando para tentar encontrar um espacinho que fosse. Completamente diferente do meu porto, onde poucos eram os que passavam por lá, e menos ainda os que ficavam.

Eu sentia fome, mas não tinha nada para comprar ou trocar por comida. Pedi ajuda a um dos marinheiros que por ali estava, e ele, compadecido com a minha aparência, me ajudou. Me deu o que comer, me ajudou a conseguir roupas limpas e me deixou tomar um banho em seu barco, que por sinal era muito maior que o meu.

Quando minha aparência já não parecia mais tão desmazelada e sofrida ele me explicou algumas coisas sobre aquele lugar. Me disse que a grande maioria dos que ali estavam eram como eu. Almas perdidas em águas calmas.

Cada um lidou com o próprio acidente de uma forma. Alguns resolveram construir um barquinho exatamente igual ao que perdera no naufrágio e resolveram partir em busca do seu porto de origem. Estes geralmente obtêm êxito, porém se esquecem que nada é como nos lembramos e a decepção de não encontrar seu porto exatamente como se lembrava faz com que estas pessoas acabem perdidas novamente, mas agora em águas turvas e turbulentas.

Outros, aqueles que cansaram do mar, mas seguem ansiando por um lugar para chamar de casa, acabam ficando na ilha. Relembram com saudade do seu porto, mas aceitam o lugar que o destino os jogou.

Por fim há um terceiro grupo de náufragos. Um grupo que se deixa ser tomado pela curiosidade do que há além daquela ilha, o que mais se pode conhecer fora daquele porto, quais outros lugares o mar ainda esconde, e o que se pode encontrar se nos permitirmos partir.

Estas pessoas vivem viajando. Às vezes em grandes grupos, às vezes sozinhos. Alguns em grandes barcos, outros partem apenas com o mínimo que conseguem. Se renovam com novas caras e se desfazem de acordo com o destino de cada um.

Este é um grupo que vive de saudades, que se despede com frequência, mas que também respira novos ares todos os dias, conhece pessoas e culturas em cada parada, e acumulam memórias, mas não as deixa jogadas nos cantos do barco. Levam suas memórias marcadas na alma, em um cantinho que não ocupam espaço, mas que ficam lá sempre disponíveis para matar a saudade de algum cantinho especial do mundo.

Eu escolhi seguir com estes viajantes. Hoje estou pronta para embarcar na minha primeira viagem após o naufrágio, mas não poderia partir sem deixar estas palavras para trás. Não conseguia viajar carregando o peso destas memórias.

Hoje entendi que memórias são para serem contadas, libertas, livres. E não guardadas como uma mala custosa de carregar.

Agora eu preciso ir, sinto que este é o meu momento. O cheiro do mar me empolga e eu não posso mais esperar para viver minhas próximas histórias.

Para você que por acaso se esbarre nestas frases soltas, perdidas em alguma ilha por aí, não guarde estes rascunhos com você. Segure só o suficiente para entender minha mensagem, e depois liberte minhas palavras para viver suas novas vidas.

Deixe que outros náufragos conheçam estas linhas, e leve com você só o suficiente para deixar mais leve sua alma, leve o sentimento de liberdade, de aventura, de que mesmo quando der errado a vida continua e não dá para se agarrar a tantas certezas para viver.

Deixe o vento e o mar carregarem esta mensagem, e aceite a vida acontecer.

Gabriela Lourenço
Enviado por Gabriela Lourenço em 01/04/2024
Código do texto: T8032422
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