Para quem importar

31 de Março de 2024

Para quem importar:

Hoje pela manhã, eu acordei e como de costume, fiquei na cama, rezando secretamente para que tudo tivesse em fim acabado. Infelizmente, o barulho alto do despertador, me golpeou os ouvidos furiosamente. A realidade estava me esperando novamente. Senti meu estômago embrulhar e minha cabeça pender para baixo, sendo incapaz de segurar seu próprio peso em cima dos ombros. Não! Eu não estava cansada, mas sim, apavorada, com a certeza de ter mais um dia entediante e semelhante ao de ontem pela frente.

Por acaso, eu moro com dois gatos. Tive de impor um limite na quantidade deles, do contrário, eu seria em poucos anos, a versão mais temida e mais clichê dos dias atuais. Eu seria, " a velha dos gatos" . Desesperada e incapaz de estabelecer contato com outros seres humanos, eu passaria meus dias falando sobre e resgatando cada felino das ruas. Credo! A quem estou enganado? Eu nem gosto de gatos. Os tenho, por mera intervenção do acaso e também, porque sou biologicamente incapaz de me deparar com uma cena trágica e simplesmente ignorar. Sendo assim, eu resgatei duas gatas da rua, a pouco mais de 4 anos e desde então, divido a casa com elas.

O meu nome? Quem se importa, se você é como eu, está aqui para .. Por que você está aqui mesmo?

Não importa! O fato é que, não tendo tempo o suficiente para me arrumar, eu fiz, como de costume e vesti minhas roupas depressa, encaixei os sapatos nos pés, peguei minha bolsa e saí. Pensei, é claro, o que sempre penso, ao girar a maçaneta da porta: Tomara que seja a última vez.

Então peguei o ónibus, nada de interessante no ónibus. E no trabalho, bem, estou cercada de gente estranha, quase o tempo todo. A minha esquerda se senta uma menina da Etiópia, seu cabelo, vez ou outra me surpreende, me fazendo pensar que estou diante de alguém difrente quase sempre, uma infinidade de penteados lhe adornam o rosto e quase sempre eu penso, bem, me pego pensando: Em que momento será que ela tem tempo pra isso tudo?

Bem, a minha direita, se senta Sveta. Descobri recentemente que o seu nome significa " luz" em Russo. No entanto, ela é refugiada da Ucrânia. E toda vez que, casualmente, ela me pergunta como eu estou, tento não sucumbir ao ímpeto de dizer a verdade: " Eu estou na merda! Não poderia estar pior!" Ao invés disso, sorrio e digo gentilmente que vou bem. Sendo incapaz de me ver debruçada sobre ela, chorando, despejando minha dor, nas costas de uma mulher que sobreviveu e fugiu da guerra. Sei lá, sempre que nos falamos, de algum modo eu me sinto culpada, porque de repente, parece que estou reclamando de barriga cheia.

Pois bem, o diga segue tranquilo, uma sucessão de trabalhos ocupam minha mesa e por conveniência, minha mente também. Em geral eu trabalho de fone de ouvido, na maioria do tempo, eu nem sequer estou ouvindo coisa alguma, no entanto somente eles abafam as vozes que vem de dentro, bem como, os sorrisos e fofocas que vem de fora. Costumo a dizer, meu ouvido direito fala Russo e meu ouvido esquerdo fala Amari( língua da Etiópia). Então, meu cérebro pensa em português, as vezes em inglês e minha boca, eventualmente se obriga a conversar em hebraico. Sim! Eu moro em Israel. Agora já vão fazer cinco anos e para quem importar, eu passei pelos conflitos relativamente bem, estou bem. Porém, tenho que constantemente dar satisfação a minha família no Brasil da minha condição em vida. Normalmente, e não é que eu me orgulhe de já ter pensando assim, mas eu fico imaginando com frequência a possibilidade da minha morte.

Bem, acho que isso é tudo por hoje. Ah claro! Mais uma coisa. Essa tarde eu vi uma foto da minha ex com sua nova namorada, eu queria dizer que ela não significa nada para mim, que a distância se encarregou de desfazer qualquer coisa que pudessemos ter, mas é mentira. Ver ela tão feliz na Irlanda, visitando os lugares que eu sonhei em estar com ela, me enoja! Sinto raiva e penda de mim mesma, quase o tempo todo e me sinto tão sozinha, sem lar. Sem um lugar para chamar de meu ou mesmo alguém, com quem eu pudesse compartilhar isso tudo. Bem, ao menos, até agora, acho.

Grécia
Enviado por Grécia em 31/03/2024
Reeditado em 29/06/2024
Código do texto: T8031915
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